Voto Distrital e a Crise nos EUA

Alberto  Carlos de Almeida, Valor Econômico 12 Agosto

O impasse político na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos que resultou na aprovação, na 25ª hora, de uma proposta (meia-boca) que evitou o calote de dívida em 2011 tem como principal causa política o voto distrital. O conflito e a radicalização entre republicanos e democratas continuará. Há 437 deputados federais e, destes, pouco menos de 400 são eleitos por distritos certos, isto é, distritos nos quais sua eleição está praticamente assegurada.

Assim, a principal disputa para um candidato republicano ou democrata não é a eleição, mas a primária que é realizada em seu distrito. Se você for republicano e disputar a eleição em um distrito republicano, sabe que o grande desafio é ser escolhido no dia das primárias. O mesmo vale para um democrata em um distrito democrata. Passada essa barreira, você praticamente pode se considerar eleito muito antes do dia da eleição.

Vale perguntar o que é preciso para vencer nas primárias. Quem escolhe o candidato de um partido são os militantes mais aguerridos daquele partido, as pessoas mais empenhadas, as pessoas que mais participam das atividades políticas, aqueles que estão mais mobilizados. Na maioria dos casos, essas pessoas ou são republicanos radicais ou democratas radicais. Assim, para que você seja o escolhido para concorrer em seu distrito, terá que agradar não aos seus eleitores, mas à maioria radical que vota na primária republicana ou democrata.

O grande incentivo, portanto, dos deputados federais -americanos é para a radicalização. Exatamente o espetáculo que acabamos de ver há duas semanas. Não há nada no DNA daqueles representantes que os torne radicais. O que há são instituições políticas que levam a isso, em particular o voto distrital e a manipulação dos limites de cada distrito para diminuir o risco de não serem reeleitos.

Qualquer americano sabe o que significa "gerrymandering". Originalmente escrito "Gerry-mander", o termo foi utilizado pela primeira vez pelo "Boston Gazette" em 26 de março de 1812, quando o então governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, manipulou os limites dos distritos de seu estado com o objetivo de beneficiar seu partido. Um dos distritos ficou com o formato de uma salamandra. Combinando-se Gerry com "salamander" tem-se hoje o consagrado termo "gerrymandering", que é sinônimo de definir o distrito eleitoral de maneira a assegurar a eleição de um determinado candidato.

Não há político que não queira assegurar sua eterna sobrevivência eleitoral. Isso vale para brasileiros e americanos. Quando o sistema eleitoral é distrital, a eterna reeleição é um objetivo bastante fácil de ser atingido. Basta definir o distrito de tal maneira que bem mais do que 50% dos eleitores votem sistematicamente republicano ou democrata. Nos Estados Unidos, o perfil básico de um eleitor republicano é bem conhecido: renda mais elevada, morador de subúrbio e, muitas vezes, de áreas populacionalmente menos densas. O eleitor democrata tende a morar em lugares densamente habitados, tem renda mais baixa e está mais presente nas "inner cities". Adicione-se a isso que, dentro de certos limites jurídicos, são os políticos que definem os distritos nos Estados Unidos.

Os dois principais limites jurídicos nos Estados Unidos são: todos os distritos precisam ter rigorosamente o mesmo número de eleitores e as minorias étnicas não podem estar diluídas nos distritos ao ponto de não conseguirem eleger um representante. É importante mencionar que os americanos precisam redistritalizar todo o país a cada dez anos com base nos dados do censo. Como a população se muda com frequência, há áreas que perdem habitantes e outras que ganham.

Assim, a redistritalização é feita a cada década para assegurar ao máximo que seja cumprida a determinação de "um homem, um voto", de que todos os distritos tenham exatamente o mesmo número de eleitores (esse princípio, se aplicado ao caso brasileiro, levaria o Estado de São Paulo a passar dos atuais 70 deputados federais para aproximadamente 120, como demonstrei em artigo aqui publicado).

Aqui estão todos os ingredientes do "gerrymandering". Na figura "a", os três distritos tiveram seus limites definidos de tal maneira que em todos eles venceria um candidato republicano (azul). Três regiões de cada distrito votam sistematicamente em um republicano (como se fosse a região dos Jardins, em São Paulo, votando em um candidato do PSDB, enquanto as outras duas regiões votariam no candidato do PT). A figura "b" tem a mesma distribuição de eleitores, mas os limites dos distritos são diferentes. Neste caso, os republicanos elegeriam dois deputados e os democratas passariam a eleger um deputado.



Há ainda outra possibilidade (figura "c"), na qual os novos limites dos distritos levariam a dois deputados democratas (vermelho) e um republicano. A definição dos limites dos distritos é uma questão de força política. De maneira geral, nos Estados onde os republicanos controlam o governo estadual, no ano da redistritalização há a manipulação que leva a mais distritos onde a eleição de um deputado federal republicano é certa. O mesmo vale para governadores democratas.

Há ainda uma terceira possibilidade: deputados federais republicanos e democratas em exercício de mandato, de um determinado Estado, fazem um acordão, de tal maneira que cada um terá seu distrito certo, onde cada um, independentemente do partido, terá a reeleição garantida. Foi assim que, em 2002, de todos os deputados que disputaram a reeleição nos Estados Unidos somente quatro foram derrotados. Algo vergonhoso para o país que mais defende a competitividade econômica. Não há competitividade política. Isso é obra e graça do sistema distrital combinado com "gerrymandering".

Se você for um deputado federal americano e quiser redesenhar seu distrito de maneira a tornar mais fácil ainda sua reeleição, basta comprar, por US$ 7.500, o programa de computador "Maptitude for Redistricting". Trata-se de uma completíssima base de dados georreferenciada: dados eleitorais, de renda, resultados de primárias, população, número de transações imobiliárias e todas as estatísticas que pudermos imaginar. Esse programa facilita sobremaneira a definição de um distrito no qual o deputado com mandato jamais perderá a reeleição. A quantia de US$ 7.500 é muito pequena, quando se pensa no benefício esperado desse programa de computador.

O quarto distrito de Illinois é uma vergonha em termos de "gerrymandering", e manipulação para perpetuação no poder de um deputado federal democrata. Pode-se ver na figura duas áreas verdes, ao sul e ao norte. As duas áreas contêm o voto hispânico, predominantemente democrata, e estão ligadas por uma faixa muito estreita, com dois quilômetros de extensão, que passa exatamente em cima do asfalto da rodovia interestadual 294, ou seja, um trecho onde não existe sequer um eleitor.

Trata-se de um "gerrymandering" tão escandaloso quanto o que eu chamaria de "distrito dos surfistas", o 23 ºda Califórnia, que também eterniza no poder um representante democrata. É formado por uma estrita faixa litorânea, densamente povoada por surfistas, que desce de San Luis Obispo até Port Hueneme. Manipulação não é, evidentemente, monopólio dos democratas. O 22º distrito do Texas foi redesenhado, em 2003, para favorecer, o que acabou acontecendo, o republicano Tom DeLay. Graças a vários recortes esquisitos, foi possível retirar da área contígua eleitores tradicionalmente democratas.

O fato é que, na eleição de 2002, em pouco mais de 80 distritos houve somente um candidato, ou seja, quase 20% de toda a Câmara dos Deputados foram conquistados sem competição alguma. Hoje, a Câmara é um local fossilizado e radicalizado. A grande demonstração para o mundo desse fato ocorreu há duas semanas, porque dizia respeito a uma votação que tinha impacto na vida de todos os países. A radicalização, porém, é a regra.

Penso que muitos defensores do voto distrital no Brasil o façam porque ignoram completamente como ele funciona em outros países. A manipulação não é monopólio dos Estados Unidos. Acontece em todos os lugares onde há deputados eleitos em distritos: Alemanha, Canadá etc. Toda vez que se ignora o funcionamento de um sistema político, é mais fácil idealizá-lo como algo perfeito. É preciso enfrentar a realidade: o sistema distrital leva à redução drástica da competitividade do sistema.

É melhor acreditar em Papai Noel do que acreditar que nossos políticos não farão o mesmo no Brasil. Serão escândalos de corrupção para manipular distritos que nos deixarão com saudades do mensalão, do Ministério dos Transportes de Alfredo Nascimento e de outros escândalos considerados inaceitáveis. Afinal, nada mais valioso do que perpetuar-se no poder.

Entrevista de Fernando Limongi - Valor - 5/8/2011

Em entrevista ao Valor, afirma que a maior novidade da conjuntura política brasileira é a unidade do PMDB, mas ainda se confessa aturdido pela tendência de fragmentação do quadro partidário que acreditava estar em processo de reversão. Diz que a crise política por que passa o governo Barack Obama revela uma crise decisória no sistema político americano que não deveria servir de inspiração para nenhuma das democracias emergentes. Lança uma provocação aos compatriotas que não conseguem enxergar nenhum outro país mais corrupto que o Brasil: “Não há como medir a corrupção. Todos os indicadores são baseados em percepção que é um nome bonito para ‘pré-conceito‘. É possível obter uma correlação quase perfeita entre índices desse tipo e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos”.

Por sua importância para o debate, e para conhecimento de quem não tem acesso ao Valor, a seguir, a entrevista na íntegra:

Valor: O governo Dilma Rousseff mal começou e já trocou dois ministros. Aliados se dizem apreensivos com seu estilo. Teme-se que colha troco lá na frente. Dilma corre o risco de se inviabilizar?

Fernando Limongi: Se você acompanha o início do [Fernando] Collor, do Fernando Henrique e do [Luiz Inácio] Lula [da Silva], todos começaram com um rearranjo muito profundo das bases. Collor superestimou seu poder e precisou reformular o ministério. FHC começou com um governo majoritário para aprovar legislação ordinária, mas minoritário para reforma constitucional. Para passar a reforma da Previdência, chamou o PP e rearrumou a coalizão. Lula também começou minoritário. Na primeira fase o [ex] PFL e o PSDB cooperaram, depois ele também refez o ministério.

Valor: A base excessivamente heterogênea do governo não é fonte permanente de tensão?

Limongi: O que ocorreu com o [Antonio] Palocci também ocorreu no governo FHC, que teve uma crise no caso de escuta telefônica na Casa Civil [conversa grampeada entre o embaixador Júlio Cesar dos Santos e o representante da Raytheon, empresa que disputava o Sivam, levou à queda do chefe de gabinete do presidente, Xico Graziano]. Esse tipo de problema sempre acontece. Os governos sempre custam a engrenar e a encontrar seu ponto de equilíbrio. Dilma, por ter maior continuidade com Lula – com o fim do governo, não com seu início -, parecia que não ia ter esse problema de ajuste, mas é sempre difícil botar a coisa pra funcionar. O governo começa, tenta achar o prumo e encaixar as peças. É o contrário da ideia da lua de mel, do período de graça. Só com o início de governo é possível saber se as pessoas combinam com os cargos e as lideranças são de fato exercidas. Lula só foi achar o prumo quando Dilma subiu para a Casa Civil e botou a máquina para andar. Até lá, a visão era toda negativa porque a coisa não funcionava. Tinha-se grande expectativa de que [José] Dirceu ia ser o condutor, mas ele se mostrou muito aquém das expectativas. Além do mensalão, só deu problema e nunca foi o homem da máquina que se esperava.

Valor: Essa fase inicial de ajustes pode ser semelhante a outros governos, mas a base dela é mais ampla do que a de qualquer outro. São 17 partidos na base, sendo 7 representados no governo. A dificuldade de abrigar todos no primeiro escalão não é parte da explicação?

Limongi: Pode ser, mas não há evidências de que esse é o problema. Do ponto de vista das evidências, o que chama a atenção, e não se dá a devida atenção, é que o PMDB tem votado absolutamente disciplinado. Ter votado 100% unido no salário mínimo e no Código Florestal não é pouca coisa. O PMDB nunca teve essa unidade.

Valor: Qual é sua leitura dessa unidade?

Limongi: Essa unidade é politicamente construída. [Michel] Temer exerce uma liderança sobre a bancada que ninguém nunca teve. O PMDB sempre esteve em todos os governos, mas nunca com essa disciplina. Isso é disciplina de PT. O PMDB hoje tem mais cadeiras e representação nacional do que qualquer outro partido. Está jogando diferente. Se há tensão no interior da base por espaço, o PMDB vai ocupá-lo. O partido já não era pequeno no fim do governo Lula. E agora joga com unidade para aumentar seu espaço. Todo mundo falou do seu lado fisiológico ou ruralista no Código Florestal. Até pode ser que o PMDB tenha sido majoritariamente ruralista, mas e o PCdoB, que votou igual?

Limongi: É parte da estratégia política do PMDB, e não necessariamente o partido é o mal. Não existe um lado do bem e do mal, como todo mundo tende a ler. Meus filhos de cinco e oito anos podem pensar assim, mas as coisas são muito mais complexas. O Código Florestal tinha muitos lados, vi alguns debates e não conseguia saber de que lado eu estava. Ninguém, no fundo, sabia de que lado estava.

Valor: Mas o fato é que o governo foi derrotado na votação…

Limongi: Em situações semelhantes outros governos sempre foram mais ambíguos, mais coniventes e dançaram conforme a música. Dilma bateu ficha numa questão difícil. FHC e Lula sempre fugiram pela tangente nessas horas, fizeram algum acordo que diluía o embate. Lula decidia por decreto no tema. Dilma não diluiu. Talvez tenha sobre-estimado forças, não tenha querido voltar atrás, perder imagem. Ex post foi desnecessário, até porque ainda tem Senado e a negociação vai e volta.

Valor: Essa disposição de bater ficha, no limite, não pode comprometê-la com a base?

Limongi: As demissões nos Transportes vão na mesma direção, muito menos panos quentes do que normalmente se coloca nessas questões. O curioso é que quando ela compõe é porque está sendo conivente. Quando enfrenta é porque não tem jogo de cintura. O partido com o qual está brigando, o PR, teve problemas similares no governo FHC, quando ainda se chamava PL. Valdemar Costa Neto meteu-se num conflito que envolveu a Polícia Federal em Guarulhos. Saiu atirando e foi a partir daí que começou a construir a aliança com o PT. Quando o PL saiu do governo, Valdemar disse que cada um tem o porto que merece, falando que o Temer controlava o porto de Santos e ele, Guarulhos. Essa redefinição de espaços tem muito a ver com a renovação das cúpulas, que vai bater no mensalão. O PL era controlado por Álvaro Valle. Quando ele morreu, o controle passou para Valdemar. O PTB era controlado por aquele banqueiro do Paraná que foi ministro de FHC [José Eduardo de Andrade Vieira, do Bamerindus]. Aí o cara saiu e veio [Roberto] Jefferson. [Paulo] Maluf perdeu o controle do PP com a reeleição. Não se sabe como esses partidos são controlados. São extremamente centralizados e baseados em comissões provisórias. Seu eleitor votava numa direita tipo PFL, PDS ou PMDB, controlada por velhas lideranças mais acomodadas. Quando veio a transição PSDB-PT, começou a hemorragia na direita tradicional e esses partidos começaram a disputar espaço. É essa a malta que Dilma está tentando segurar em áreas com muito dinheiro, de Copa do Mundo e Olimpíada, e onde o Estado tem que se mostrar eficiente. Então decidiu enfrentar.

Valor: Sua aposta é de que, na indefinição de como se dará a relação de Dilma com esses partidos médios, o PMDB decidiu apostar cada vez mais na condição de fiador da governabilidade?

Limongi: O PMDB pode crescer muito aí. Não fiz os cálculos, mas acho que o PR é dispensável.

Valor: São 41 deputados…

Limongi: É, mas tem o bloco que o PR controla de todos os pequenos partidos de direita. Boa parte desses caras, se o governo falar “ó, ou joga direito ou tá fora”, não tem muito para onde correr. O PR não controla nenhum Estado, não tem nenhuma máquina.

Valor: Dilma tem sido persistentemente questionada sobre suas condições para lidar com essa base política, ao contrário de Lula e de FHC. Sua inexperiência nesse campo não pesa?

Limongi: Na verdade, no início dos governos Lula e FHC ninguém lhes reconhecia essas qualidades. Depois ambos viraram gênios. Dizem que Dilma é inexperiente, mas FHC nunca foi um cara prático. Dona Ruth é que administrava a conta corrente dele. Lula nunca tinha administrado nada, não tinha relação com a máquina do Estado. Dilma cresceu na máquina gaúcha e foi bater na Casa Civil. Foi superbem-sucedida e subiu como um foguete. Conhece como se governa, muito mais do que conheciam FHC, Collor, Itamar ou Lula. O que é que há no governo que a ministra da Casa Civil não conheça?

Valor: O controle da corrupção passa pela redução dos cargos comissionados?

Limongi: O problema é mais complicado do que parece. Algumas dessas questões que aparecem hoje são problemas e ambiguidades presentes desde o início do governo representativo de quem deve ocupar cargos, qual é o critério para a distribuição, se deve ser a competência ou o critério partidário. Nos Estados Unidos, esse é um problema desde o conflito federalistas versus republicanos no século XIX e até hoje não se resolveu. É verdade que esses conflitos por vezes são inadministráveis. O assassino de [Abraham] Lincoln foi um cara que não recebeu o emprego que esperava. Quem deve governar? Se forem os mais competentes, então quem governa são sempre os mesmos, os mais competentes. Mas você votou num partido para exercer o governo. O que a gente chama de loteamento é o exercício do governo partidário. Se o PT nomeia todo mundo e governa mal, a gente bota o partido para fora e vota no PSDB. O PSDB põe seus homens, se não derem no couro, que venha o próximo. Na coligação governista, o partido que tem quadros é o PT, mas o caso dos Transportes mostra que alguns partidos vão construindo ramificações com o setor privado e formando “quadros” em alguns setores.

Valor: E o combate à corrupção não passa pelo corte dessas ramificações?

Limongi: A gente não tem nenhuma forma de saber se a corrupção aqui é mais alta ou mais baixa do que no resto do mundo. O problema é óbvio: como se mede corrupção? Não pode ser medida objetivamente por razões óbvias. Os indicadores normalmente usados em pesquisas comparadas são indiretos e se referem à percepção. Muitas vezes essa percepção é um nome mais bonito para “pré-conceito”. Eu brinco que é possível obter uma correlação quase perfeita entre esses índices e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos. Todas as indicações são de que a corrupção aqui é como em qualquer outro lugar. A Inglaterra, com esse escândalo da imprensa, mostra que quando os interesses privados chegam junto do Estado você não consegue mais distingui-los. De repente o cara está na Scotland Yard, de vez em quando ele está no jornal, ele vai na Scotland Yard… Esse é o jeito que os interesses se constroem. Não tem saída para isso. É um problema de assimetria de informações. Como é que você vai ter um setor de empreiteiras que seja verdadeiramente competitivo? Três ou quatro grandes empresas vão controlar o mercado. E quem vai contratar esses caras? No fim é o cara que era da empreiteira e foi para o Estado e de lá para o setor privado, e esses interesses acabam não se distinguindo como se gostaria.

Valor: O sr. diz que não há como medir se o Brasil é mais ou menos corrupto do que outros países. A que o sr. atribui, então, a difusão dessa convicção entre os brasileiros?Limongi: É puro “pré-conceito”. Quem acompanha política em outros lugares do mundo sabe que coisas feias acontecem em todo lugar. Uma vez fui fazer uma conferência para banqueiros na Europa. Eles queriam saber como funcionava o sistema político brasileiro. Fui lá e mostrei que funcionava bem, que tinha lógica, que a forma como eles entendiam os sistemas políticos europeus poderiam ser usadas para entender o Brasil. Daí, no debate, um senhor começou a me espinafrar, dizendo que estava cansado de ouvir que os políticos brasileiros eram confiáveis, que as coisas aqui eram OK, e quando ele abria o jornal só lia notícias desabonadoras quanto às nossas práticas políticas, que o governo brasileiro só fazia aumentar o déficit. Quando ele acabou de falar, eu estava meio nas cordas e para ganhar tempo perguntei de que país ele vinha. Ele respondeu: Itália. Não precisei responder. Só “I see” com riso meio cínico bastou.

Valor: O sr. vê alguma relação entre a perda de prerrogativas legislativas e a ocupação dos aliados em desencavar os podres da República? As MPs têm saído com mais de 50 temas, tanto que uma recebeu o nome de “árvore de Natal”…

Limongi:: Na entrevista do Temer para o Valor, ele começa falando: “Participei de um grupo que elaborou uma medida provisória. Nós ficamos estudando e todo mundo participou”. Então quem fez a medida? Dilma não tem tempo para fazer isso. Quando sai uma MP, não é uma decisão unilateral do Executivo.

Valor: Pode ser uma costura partidária, mas que foge do âmbito legislativo…

Limongi: Se está saindo como “árvore de Natal” é porque todo mundo já deu “pitaco”. Quando o texto começa a tramitar, não foi Deus quem o criou. Todo mundo já botou a mão. O texto não é confeccionado a portas fechadas.

Valor: Mas a oposição não participa…

Limongi: Nem é para participar. Tem a tramitação para espernear. Quando passou a reforma das MPs no governo FHC, todo mundo achou que estava fazendo uma grande coisa. E, na verdade, foi um desastre institucional. A MP tramitava no Congresso, em sessão conjunta da Câmara e do Senado. Não atrapalhava a tramitação dos demais projetos nem travava a pauta. Agora a medida passa pela Câmara, depois vai para o Senado, tem um tempo para correr, e tem que apresentar emenda aqui e lá, mas ninguém sabe como funciona. O fato é que se o Congresso quiser rejeitar uma medida porque não é pertinente à matéria em tramitação, derruba. O regimento garante. Não tem essa de nosso Legislativo estar subjugado, isso é tudo bobagem.

Valor: Num artigo polêmico, FHC disse que a política tem que ser buscada fora das instituições, nos jovens e na internet. A maior surpresa de 2010, Marina Silva, não veio desse mundo?

Limongi: Marina, de fato, surpreendeu. Mas só foi tão bem votada porque Serra e Dilma perderam votos. Lula polarizou demais no fim da campanha, chamou para a briga e tirou votos de Dilma, que, pelo desempenho da economia, teve um resultado eleitoral aquém do esperado no primeiro turno. Tanto que seguraram Lula no segundo. José Serra cresceu, mas puxando um voto que não era dele, de quem achava que, por ter religião, não podia votar em Dilma. Foi um voto que também beneficiou Marina. Teve a coisa religiosa que surpreendeu todo mundo. Marina não conseguiu segurar nem o PV. Então tem um apoio muito difuso e desorganizado para ser considerado um trunfo. Tirante o PT, nenhum partido consegue penetrar na sociedade, mas o que os petistas têm de voto é muito mais do que têm de militância e penetração. É outro modelo de partido daquele do pós-guerra, que tinha células, militância, cobrava contribuição, fazia jornal e tinha escolinha. Hoje partido não precisa disso, vai à TV. Se é isso que FHC quer dizer, realmente mudou e não apenas no Brasil. Mas não é de hoje.

Valor: A internet, então, ainda vai demorar a dar as cartas na política?

Limongi: Deve ter muita gente tentando transformar o que se passa na internet em voto. Não vai ser espontâneo. FHC é sociólogo e sabe que não há nada de espontâneo nesse mundo de meu Deus. Tem que ter coisa organizada, estruturada. Onde isso tudo junta? No modelo institucional da eleição majoritária. Por isso PT e PSDB têm vantagem. Porque polarizam as eleições e coordenam a competição. PT e PSDB saem na frente na hora de lançar candidato à Presidência. Vai ter um candidato do PSDB, um do PT e uma terceira via. Marina vai ter que correr por fora para montar uma estrutura de campanha. Não vai ter os governos estaduais do PSDB nem a estrutura de governo federal do PT. Não vai ganhar pelo Twitter, até porque as pessoas, para votarem nela, precisam saber que ela tem chance de ganhar. Uma candidatura desastrosa do PSDB poderia fazer isso. Mas o PSDB teria que pisar muito na bola. A história é cheia de partidos que dilapidam patrimônio brigando internamente. Serra já fez isso uma vez e ameaça repetir ao resistir a ceder a liderança.

Valor: Se a tendência de polarização na eleição presidencial é tão forte assim, por que não afeta a disputa pelo Congresso?

Limongi: O resultado mais intrigante dessas eleições foi o descasamento entre as eleições majoritárias e proporcionais. A eleição presidencial vertebra a disputa nos Estados, que foi totalmente casada com a presidencial. Em todo Estado teve o candidato da Dilma e do Serra. E o PMDB ora jogou com um, ora com o outro. Agora, no Congresso, os sinais de que o número de partidos estava diminuindo desapareceram. E não apenas porque PP, PDT, PTB, que eram partidos médios, caíram e se igualaram ao PR ou ao PSB. PMDB, PT e PSDB também caíram. Pode ter a ver com esse terreno pantanoso que saiu da órbita do PSDB e caiu na do PT, mas ainda não está fazendo muito sentido. O que parece de fato diferente é essa coisa de o PMDB votar unido.

Valor: Esse pacto político pela distribuição de renda, contra o qual ninguém se rebela, não é o substrato dessa fragmentação tão acentuada?

Limongi: Há uma certa indistinção entre o PT e o PSDB quanto às propostas. A gente não sabe o que o PSDB teria para fazer de diferente do PT. O discurso do Serra foi da eficiência, faço-melhor-do-que-eles-que-só-seguem-nossa-cartilha. Mas não deu certo. O PSDB não tem realmente uma agenda alternativa. O PT, enquanto na oposição, conseguia fazer uma imagem de que era diferente e tal, que depois com o mensalão se viu que não era tão diferente assim.

Valor: E como conseguem polarizar o eleitorado se não têm propostas diferentes?

Limongi: Não é fácil entender qual é a percepção que de fato os eleitores têm dos partidos, se os veem ou não como diferentes e se essas diferenças são programáticas ou de outra natureza. Para saber essas coisas é preciso fazer pesquisa de opinião, entender como os eleitores organizam a disputa partidária na cabeça. E quando a gente lê pesquisa bem feita sobre esse tipo de coisa sempre acaba se surpreendendo. O que me parece interessante é que os partidos brasileiros podem não estar organizados como estavam os da Europa do pós-guerra, mas a divisão do eleitor é forte. Todo mundo diz que brasileiro é pouco politizado. Mas é o contrário. Nessa última eleição presidencial, minha filha mudou de escola e passei a levá-la à casa das novas amiguinhas. Chegava lá e os pais me perguntavam: “Voto em tal partido, e você?” Ouvi inúmeras vezes no metrô gente falando em quem iria votar. Passei duas eleições presidenciais nos Estados Unidos sem ouvir nenhuma pessoa falar sobre eleição presidencial. E estava dentro do departamento de ciência política de uma universidade. Isso é impensável no Brasil. Todo mundo emite opinião política o tempo inteiro. E todo mundo declara suas preferências. E isso não pode se dar sem que os partidos desempenhem um papel. O voto é obrigatório, mas sempre se pode votar em branco ou nulo. E, se os partidos não fossem capazes de mobilizar eleitores, a taxa de votos brancos e nulos deveria ser muito alta. Até foram em algumas eleições, mas caíram violentamente com o voto eletrônico. É possível que votações como a de Enéas, Clodovil e Tiririca venham de eleitores que os partidos não conseguem mobilizar. Sempre há um candidato com discurso antipolítica para o qual um caminhão de eleitores converge.

Valor: Muito se especula sobre o vetor político da chamada nova classe média. Essa seria a última eleição da distribuição de renda?

Limongi: Acho que leva algumas gerações para a ascensão social virar conservadorismo. Não acredito que o cara que subiu na vida em dois anos vai ficar defendendo o dele e virar conservador. O eleitor pode ser extremamente volátil, no sentido de que, se o PT amanhã vem com uma crise econômica e esses ganhos são perdidos de um governo para o outro, o eleitor pode se bandear para a oposição. Com isso estou de acordo. Foi o que aconteceu no segundo mandato de FHC. No primeiro, ele estava com tudo, distribuiu renda e fez crescer. Veio a crise, o eleitor bandeou para o outro lado. Mas se o crescimento se mantiver não vejo esse cenário.

Valor: A última vez em que a política balançou o mercado foi na eleição de 2002. De lá para cá, entra mensalão, sai mensalão, entra PR, sai PR, e a política não abala mais a economia. Por que houve esse insulamento? Por que ninguém se arrisca a mexer no dito tripé da economia?

Limongi: Não sei se foi a política ou se foi a economia que se insulou. No fim do governo, Lula fez um certo keynesianismo e ninguém se insurgiu contra. Até porque se saíssem batendo poderiam colher rejeição eleitoral. Os políticos observam e esperam se vai dar resultado. Se der, não criticam. Na hora em que der errado, a oposição vai sair criticando e aí o PSDB vai montar seu discurso alternativo. Se a economia continuar bem até 2014, não vai haver plano alternativo. O fato é que todo mundo foi surpreendido pelas mudanças estruturais no mercado de trabalho do Brasil, muito mais significativas que a Bolsa Família. O mundo político também parece ter sido surpreendido pelas conexões do Brasil com a China, que o tornaram menos dependente dos Estados Unidos.

Valor: Se a gente olha para o Congresso americano, vê o fracasso tanto das tentativas de aprovar uma regulação mais rígida para o mercado financeiro quanto esse embate republicano com o Obama. Como é que o sr. vê a resposta da política à crise financeira?

Limongi: A má qualidade do sistema politico americano é uma coisa inacreditável. Quem fica falando que o sistema brasileiro não funciona é porque não conhece o americano. Se tem um sistema político travado, parado, incapaz de produzir decisão, é o americano. É um sistema em que a Presidência tem pouco poder efetivo, depende muito de um Congresso que é capaz de barrar e está repleto de traidores. [Paul] Krugman afirmou em artigo recente que esse limite de endividamento foi renegociado e ampliado mais de uma vez ao longo do governo Bush. Que rever e readaptar o limite à realidade não teria consequência econômica alguma. Que o ponto é pura ideologia. Que os republicanos querem nocautear o Obama. Creio que ele esteja certo. Acompanhei in loco a reforma da saúde pública. Vi e ouvi os argumentos dos republicanos. É pura ideologia. Desculpe o exagero, mas é realmente primitivo. O reacionarismo é impressionante. E já radicalizaram dessa forma no passado. Fecharam o governo Clinton ao não aprovar o Orçamento. Tomaram uma tunda depois. No que fechou o governo, a população se voltou contra os republicanos.

Valor: Foi naquele momento que Clinton conseguiu a reeleição, não foi?

Limongi: Clinton estava morto e aí eles resolveram pisar em cima e espicaçar. E aí o Clinton renasceu e foi reeleito. Então é mais ou menos a mesma situação que Obama, só que agora em proporções muito maiores. A única coisa que os republicanos querem é corte de gasto e de imposto. Estão criando um sistema inviável. Todos os dados que se tem sobre desigualdade nos Estados Unidos mostram que aumentou uma barbaridade no governo republicano porque se cortou imposto no topo e gasto para base sem se conseguir, com isso, dar impulso à economia. É um exemplo de mau funcionamento do sistema político inacreditável. Faz a gente falar “puxa, estamos numa maravilha!”

Valor: Os EUA, ao contrário do Brasil, não têm um Congresso que reproduz mais ou menos as mesmas divisões da eleição presidencial?

Limongi: Nos Estados Unidos você tem a eleição presidencial e o “coattail”, que é o efeito do voto puxado pelo presidente sobre o Congresso. Mas depois você tem reversão no meio do ano – em geral, o partido do presidente perde cadeira no meio do mandato. Quanto perde é que varia. Obama perdeu muito porque o americano médio é da direita brava. Se existe um sistema político que dá veto a minorias, esse sistema é o americano. No Senado há o que se chama de “filibuster”, que é basicamente o direto de a minoria estender indefinidamente o debate, evitando que a matéria venha a voto. Se a minoria é contra, a coisa não vem a voto. Bloqueia. Para tudo. O que Obama passou de reforma da Previdência foi um negocinho desse tamanho sob um custo inacreditável. Aqui o presidente passaria aquilo tranquilo.

Valor: Os dividendos políticos dessa crise que já dura três anos é o crescimento da direita, em alguns países, como a Noruega, tragicamente?

Limongi: A Europa tem um problema grave, que é a pouca tolerância para com o imigrante. Tem dificuldade para assimilá-lo, ao mesmo tempo em que precisa dele. Há países que estão com crescimento negativo, como a Itália. Todo mundo sabe que eles precisam de mão de obra, mas não querem imigrantes. Vão acabar com déficit populacional. Todos os estudos mostram. Isso pode ser fonte de tensão política grande, mas qualquer projeção seria arriscada de como é que isso vai se resolver. Olhando para o que está acontecendo nos EUA e Europa, essas ideias de que o Brasil tem um sistema político problemático, que atrapalha a economia, a distribuição de renda, é história para boi dormir. Tudo se provou errado. Tivemos todas essas coisas sem reforma do sistema político.

Valor: E por que sistemas políticos tão vigorosos não conseguem dar uma resposta à crise?

Limongi: Esses sistemas políticos que sempre foram modelos estão embaralhados com um problema de decisão. O que pode mostrar que o sistema político é muito menos importante do que se pode achar. Há uma supervalorização das escolhas institucionais, uma expectativa de que se possa reformar tudo por modelos institucionais. Li recentemente uma citação do [Pierre] Rosanvallon [historiador francês], dizendo que logo depois da Revolução Francesa os caras começaram a falar em reforma das instituições, sempre com a expectativa de que assim se poderia eliminar todas as impurezas do sistema político. Estamos pensando isso até hoje.

Valor: Em meio a essa crise, os países emergentes têm reivindicado maior parte da governança global, mas há resistências dos ricos, que não lhes reconhecem maturidade institucional para dividir essa governança. Com que argumento se pode sustentar a justeza dessas reivindicações?

Limongi: Quem quer que olhe para o sistema político americano e seu desempenho recente colocará em questão essa ideia. O governo de Bush filho – aliás, imagina só se tivéssemos pai e filho eleitos em tão curto espaço de tempo em um país latino-americano – já começou com uma lambança institucional sem igual. Não se pode dizer que a eleição na Flórida esteve livre de fraudes e, mais, que as fraudes não influíram no resultado. Ao longo do seu governo, explodiram vários escândalos envolvendo financiadores das campanhas de Bush. Basta lembrar a Enron. Isso para não citar a invasão do Iraque, toda ela montada em relatórios discutíveis. Qual é a maturidade institucional do grande líder? E o pior é que não são só os republicanos. O livro do [Joseph] Stiglitz ["O Mundo em Queda Livre"], deveria ser leitura obrigatória. Mostra que os economistas que dirigiam os bancos que causaram a crise de 2008 foram convocados por Obama para resolvê-la. Não é apenas ideologia ou ideias básicas que guiam as políticas. São as pessoas. São os mesmos caras. E eles fizeram o que se esperava que fizessem: protegeram os bancos e deixaram os eleitores pagar a conta.