A volta de um debate esquecido?
Em 1962, Peter Bacharach e Morton Baratz publicaram o famoso artigo “Two Faces of Power,” sugerindo a existência de uma lacuna no igualmente aclamado livro de Robert A. Dahl “Who Governs?,” publicado um ano antes (1961). A crítica era simples, porém contundente. De forma a tratar o poder como uma fenômeno empiricamente verificável, Dahl teria restringido sua análise a “uma face do poder,” isto é, aquela que envolve a participação visível no processo de tomada de decisões. Visto desta perspectiva, o poder (em New Haven, diga-se de passagem, local onde o estudo fora conduzido) parecia fragmentado, não concentrado em nenhum grupo em particular, o que corroboraria a hipótese pluralista então em voga. A resposta oferecida por Bacharach e Baratz (1962), todavia, observava que o conceito de poder não pode ser reduzido à participação no processo de tomada de decisões. Embora existisse tal “face do poder,” esta seria apenas uma, mas nada dizia sobre a formulação da agenda política e das alternativas apresentadas como solução aos problemas levantados. Isto é, por que determinados temas eram ignorados e outros priorizados? Por que certas alternativas políticas nunca eram cogitadas? Por que, enfim, a dinâmica política prioriza certos problemas em detrimento de outros que sequer chegam a ser discutidos, quanto mais decididos? Mais importante, Bacharach e Baratz (1962) argumentaram que esta “segunda face do poder” se expressava em reações antecipadas por parte de grupos minoritários (em termos de poder e influência) que, por perceberem que suas demandas dificilmente seriam atendidas, sequer tomavam qualquer iniciativa de agir. Desta forma, tais grupos até poderiam participar formalmente do processo de tomada de decisões ajudando a lhe dar uma feição mais plural, mas existiria um claro viés nos tópicos sendo decididos e no conteúdo das alternativas políticas apresentadas.
Embora a ciência política mundo afora – Brasil incluído – siga priorizando a análise procedimental de processos decisórios (sendo o poder de agenda mero fator de vantagens estratégicas em meio a ele), os debates sobre o conteúdo e a formulação das agendas de políticas públicas parecem escanteados. Cumpre lembrar que este debate diz respeito àquele que provavelmente é um dos conceitos que define a ciência política como campo de pesquisa – o conceito de poder. Seguimos largamente ignorando esta “segunda face do poder” e, portanto, enviesando nossa análise justamente em relação a um dos conceitos mais caros à nossa disciplina.

Longe de ser a abordagem ideal para esta questão, cumpre observar que os trabalhos de Frank R. Baumgartner and Bryan D. Jones, inspirados em trabalhos anteriores de John W. Kingdon, Theodore Lowi e E. E. Schattschneider, entre outros, buscaram realizar esta análise no que tange à realidade política dos Estados Unidos, logrando relativo sucesso que pode ser observado em obras como “Agendas and Instability in American Politics” (University of Chicago Press, 1993) e “The Politics of Attention: How Government Prioritizes Problems” (University of Chicago Press, 2005), além do conteúdo site http://www.policyagendas.org, que torna públicos muitos dos dados utilizados pelos autores em suas obras. Até recentemente, todavia, esta iniciativa se encontrava restrita a acadêmicos estadunidenses e à análise da realidade política daquele país. Volume pulicado este ano pela Comparative Political Studies exemplifica que este não é mais o caso (http://cps.sagepub.com/content/44/8.toc), o mesmo se observando pelo número significativo de pesquisadores envolvidos no Comparative Agendas Project, como se pode ver no site http://www.comparativeagendas.org. Embora a ênfase ainda seja fortemente concentrada nos países ditos desenvolvidos (por exemplo, Bélgica, Canadá, França, Itália, etc), fica aqui a sugestão para que iniciativas semelhates sejam levadas adiante também no Brasil.

Os eleitos: Seminário Internacional UFRGS/Câmara Municipal



Sawicki aborda as relações partidárias na sociedade em rede
O Seminário Internacional As Eleitas, Os Eleitos prosseguiu nesta segunda-feira (5/9) à noite, no Plenário Otávio Rocha da Câmara Municipal de Porto Alegre, com a palestra proferida pelo cientista político e professor francês Frederic Sawicki, da Université Paris I (Sorbonne). O painel foi coordenado pelo cientista político André Marenco, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Já na abertura, Sawicki avisou que não se prenderia ao tema proposto: Como parlamentares se tornaram parlamentares. Disse que abordaria um tema teórico e ao mesmo tempo empírico para debater o papel das redes sociais na vida das organizações políticas, sindicais e de representação da sociedade.

Segundo Sawicki, essa abordagem não pode levar em conta questões individuais, mas sim relacionando-se com o interesse coletivo, campo privilegiado para o estudo da ciência política. Numa comparação entre as formas de organização dos parlamentos, Sawicki lembrou que o parlamento norte-americano é formado por homens e mulheres detentores de fortunas, pois naquele país a política expressa poder econômico. Para o cientista político, é preciso superar o conceito de Max Weber, que define que apenas os notáveis e os detentores de propriedades individuais têm direito a ser organizarem politicamente com o objetivo de chegar ao poder. 

De acordo com Sawicki, a questão central é como os partidos políticos do presente escolhem os seus candidatos a representantes e o modo como essa organização atrai ou recruta. Deve-se considerar, segundo ele, o meio imediato da pessoa. Algumas pessoas, diz ele, levam vantagem por conta de suas origens familiares, relações de amizade e até de vizinhança. Por conta dessa premissa ocorre uma desigualdade. “Essa é a questão que me interessa: por quais canais as organizações militantes entram em contato com a sociedade.”, observou o cientista político.

O seu entendimento de rede é que esse é simplesmente um meio para um partido político buscar relacionamento com o seu meio social, pois uma organização não pode ser tratada como entidade fechada, mas sim pela sua relação com a sociedade e com aquelas pessoas que construíram laços com sua estrutura. “Por isso, lanço a proposta de estudo do conceito de meio partidário que está ligado às redes com as quais ele dialoga”. Sawicki afirmou que, nos Estados Unidos e na Europa, esse tema é debatido no contexto histórico da militância, das relações políticas dos partidos com sindicatos e organizações de representação estudantil, por exemplo. 


Militantismo

Por conta dessa proposta, Sawicki considera importante valorizar o “militantismo” que traduz a forma como as pessoas se engajam pessoalmente nas agremiações partidárias. E como agem para se tornarem integrantes das mesmas. “Se nós queremos compreender essas questões, é preciso recuperar as motivações dessas pessoas para ingressar na atividade política”, salientou.

Sawicki avisou que é “muito complicado” atuar na esquerda se o indivíduo saiu de uma família com estrutura ideológica de direita, pois ele enfrenta uma convivência difícil e de hostilidade. Nesse caso, se essa pessoa não receber apoio de amigos e de colegas de partido, encontrará dificuldades para permanecer nesses partido.

No caso da França, uma saída foi a permissão para que os indivíduos formalizassem sua adesão ao Partido Socialista, por intermédio de cadastro via internet, por onde ainda poderiam efetuar doações. Mesmo assim, muitas dessas pessoas abandonaram a atividade porque não se sentiram acolhidas e ficaram isoladas da convivência grupal. 

Desse modo, diz Sawicki, a integração e o engajamento são questões complicadas. Nem todos que ingressam num partido permanecem nele de maneira perene. Na opinião de Sawicki, no Brasil a forma de adesão é um pouco diferente. As pessoas ingressam nas agremiações por conhecimento prévio e estimuladas por relações pessoais. “É importante compreender como uma organização partidária está ancorada em seu meio. Um partido muito ligado às igrejas não contribui necessariamente para a entrada dos membros dessa religião na organização política”, porque questões religiosas podem ser superadas pelos interesses sindicais das pessoas. 

Sawicki explicou que, na França, o sindicalismo é muito importante para a estrutura do Partido Socialista. Já os partidos de direita ganham adesão em escolas de relações comerciais. "Mas o partido político transcende a política. Pode ser um partido de uma rede de muçulmanos, de católicos ou de outros grupos de interesse", defendeu.


Fernando Cibelli de Castro (reg.prof. 6881)

Voto Distrital e a Crise nos EUA

Alberto  Carlos de Almeida, Valor Econômico 12 Agosto

O impasse político na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos que resultou na aprovação, na 25ª hora, de uma proposta (meia-boca) que evitou o calote de dívida em 2011 tem como principal causa política o voto distrital. O conflito e a radicalização entre republicanos e democratas continuará. Há 437 deputados federais e, destes, pouco menos de 400 são eleitos por distritos certos, isto é, distritos nos quais sua eleição está praticamente assegurada.

Assim, a principal disputa para um candidato republicano ou democrata não é a eleição, mas a primária que é realizada em seu distrito. Se você for republicano e disputar a eleição em um distrito republicano, sabe que o grande desafio é ser escolhido no dia das primárias. O mesmo vale para um democrata em um distrito democrata. Passada essa barreira, você praticamente pode se considerar eleito muito antes do dia da eleição.

Vale perguntar o que é preciso para vencer nas primárias. Quem escolhe o candidato de um partido são os militantes mais aguerridos daquele partido, as pessoas mais empenhadas, as pessoas que mais participam das atividades políticas, aqueles que estão mais mobilizados. Na maioria dos casos, essas pessoas ou são republicanos radicais ou democratas radicais. Assim, para que você seja o escolhido para concorrer em seu distrito, terá que agradar não aos seus eleitores, mas à maioria radical que vota na primária republicana ou democrata.

O grande incentivo, portanto, dos deputados federais -americanos é para a radicalização. Exatamente o espetáculo que acabamos de ver há duas semanas. Não há nada no DNA daqueles representantes que os torne radicais. O que há são instituições políticas que levam a isso, em particular o voto distrital e a manipulação dos limites de cada distrito para diminuir o risco de não serem reeleitos.

Qualquer americano sabe o que significa "gerrymandering". Originalmente escrito "Gerry-mander", o termo foi utilizado pela primeira vez pelo "Boston Gazette" em 26 de março de 1812, quando o então governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, manipulou os limites dos distritos de seu estado com o objetivo de beneficiar seu partido. Um dos distritos ficou com o formato de uma salamandra. Combinando-se Gerry com "salamander" tem-se hoje o consagrado termo "gerrymandering", que é sinônimo de definir o distrito eleitoral de maneira a assegurar a eleição de um determinado candidato.

Não há político que não queira assegurar sua eterna sobrevivência eleitoral. Isso vale para brasileiros e americanos. Quando o sistema eleitoral é distrital, a eterna reeleição é um objetivo bastante fácil de ser atingido. Basta definir o distrito de tal maneira que bem mais do que 50% dos eleitores votem sistematicamente republicano ou democrata. Nos Estados Unidos, o perfil básico de um eleitor republicano é bem conhecido: renda mais elevada, morador de subúrbio e, muitas vezes, de áreas populacionalmente menos densas. O eleitor democrata tende a morar em lugares densamente habitados, tem renda mais baixa e está mais presente nas "inner cities". Adicione-se a isso que, dentro de certos limites jurídicos, são os políticos que definem os distritos nos Estados Unidos.

Os dois principais limites jurídicos nos Estados Unidos são: todos os distritos precisam ter rigorosamente o mesmo número de eleitores e as minorias étnicas não podem estar diluídas nos distritos ao ponto de não conseguirem eleger um representante. É importante mencionar que os americanos precisam redistritalizar todo o país a cada dez anos com base nos dados do censo. Como a população se muda com frequência, há áreas que perdem habitantes e outras que ganham.

Assim, a redistritalização é feita a cada década para assegurar ao máximo que seja cumprida a determinação de "um homem, um voto", de que todos os distritos tenham exatamente o mesmo número de eleitores (esse princípio, se aplicado ao caso brasileiro, levaria o Estado de São Paulo a passar dos atuais 70 deputados federais para aproximadamente 120, como demonstrei em artigo aqui publicado).

Aqui estão todos os ingredientes do "gerrymandering". Na figura "a", os três distritos tiveram seus limites definidos de tal maneira que em todos eles venceria um candidato republicano (azul). Três regiões de cada distrito votam sistematicamente em um republicano (como se fosse a região dos Jardins, em São Paulo, votando em um candidato do PSDB, enquanto as outras duas regiões votariam no candidato do PT). A figura "b" tem a mesma distribuição de eleitores, mas os limites dos distritos são diferentes. Neste caso, os republicanos elegeriam dois deputados e os democratas passariam a eleger um deputado.



Há ainda outra possibilidade (figura "c"), na qual os novos limites dos distritos levariam a dois deputados democratas (vermelho) e um republicano. A definição dos limites dos distritos é uma questão de força política. De maneira geral, nos Estados onde os republicanos controlam o governo estadual, no ano da redistritalização há a manipulação que leva a mais distritos onde a eleição de um deputado federal republicano é certa. O mesmo vale para governadores democratas.

Há ainda uma terceira possibilidade: deputados federais republicanos e democratas em exercício de mandato, de um determinado Estado, fazem um acordão, de tal maneira que cada um terá seu distrito certo, onde cada um, independentemente do partido, terá a reeleição garantida. Foi assim que, em 2002, de todos os deputados que disputaram a reeleição nos Estados Unidos somente quatro foram derrotados. Algo vergonhoso para o país que mais defende a competitividade econômica. Não há competitividade política. Isso é obra e graça do sistema distrital combinado com "gerrymandering".

Se você for um deputado federal americano e quiser redesenhar seu distrito de maneira a tornar mais fácil ainda sua reeleição, basta comprar, por US$ 7.500, o programa de computador "Maptitude for Redistricting". Trata-se de uma completíssima base de dados georreferenciada: dados eleitorais, de renda, resultados de primárias, população, número de transações imobiliárias e todas as estatísticas que pudermos imaginar. Esse programa facilita sobremaneira a definição de um distrito no qual o deputado com mandato jamais perderá a reeleição. A quantia de US$ 7.500 é muito pequena, quando se pensa no benefício esperado desse programa de computador.

O quarto distrito de Illinois é uma vergonha em termos de "gerrymandering", e manipulação para perpetuação no poder de um deputado federal democrata. Pode-se ver na figura duas áreas verdes, ao sul e ao norte. As duas áreas contêm o voto hispânico, predominantemente democrata, e estão ligadas por uma faixa muito estreita, com dois quilômetros de extensão, que passa exatamente em cima do asfalto da rodovia interestadual 294, ou seja, um trecho onde não existe sequer um eleitor.

Trata-se de um "gerrymandering" tão escandaloso quanto o que eu chamaria de "distrito dos surfistas", o 23 ºda Califórnia, que também eterniza no poder um representante democrata. É formado por uma estrita faixa litorânea, densamente povoada por surfistas, que desce de San Luis Obispo até Port Hueneme. Manipulação não é, evidentemente, monopólio dos democratas. O 22º distrito do Texas foi redesenhado, em 2003, para favorecer, o que acabou acontecendo, o republicano Tom DeLay. Graças a vários recortes esquisitos, foi possível retirar da área contígua eleitores tradicionalmente democratas.

O fato é que, na eleição de 2002, em pouco mais de 80 distritos houve somente um candidato, ou seja, quase 20% de toda a Câmara dos Deputados foram conquistados sem competição alguma. Hoje, a Câmara é um local fossilizado e radicalizado. A grande demonstração para o mundo desse fato ocorreu há duas semanas, porque dizia respeito a uma votação que tinha impacto na vida de todos os países. A radicalização, porém, é a regra.

Penso que muitos defensores do voto distrital no Brasil o façam porque ignoram completamente como ele funciona em outros países. A manipulação não é monopólio dos Estados Unidos. Acontece em todos os lugares onde há deputados eleitos em distritos: Alemanha, Canadá etc. Toda vez que se ignora o funcionamento de um sistema político, é mais fácil idealizá-lo como algo perfeito. É preciso enfrentar a realidade: o sistema distrital leva à redução drástica da competitividade do sistema.

É melhor acreditar em Papai Noel do que acreditar que nossos políticos não farão o mesmo no Brasil. Serão escândalos de corrupção para manipular distritos que nos deixarão com saudades do mensalão, do Ministério dos Transportes de Alfredo Nascimento e de outros escândalos considerados inaceitáveis. Afinal, nada mais valioso do que perpetuar-se no poder.

Entrevista de Fernando Limongi - Valor - 5/8/2011

Em entrevista ao Valor, afirma que a maior novidade da conjuntura política brasileira é a unidade do PMDB, mas ainda se confessa aturdido pela tendência de fragmentação do quadro partidário que acreditava estar em processo de reversão. Diz que a crise política por que passa o governo Barack Obama revela uma crise decisória no sistema político americano que não deveria servir de inspiração para nenhuma das democracias emergentes. Lança uma provocação aos compatriotas que não conseguem enxergar nenhum outro país mais corrupto que o Brasil: “Não há como medir a corrupção. Todos os indicadores são baseados em percepção que é um nome bonito para ‘pré-conceito‘. É possível obter uma correlação quase perfeita entre índices desse tipo e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos”.

Por sua importância para o debate, e para conhecimento de quem não tem acesso ao Valor, a seguir, a entrevista na íntegra:

Valor: O governo Dilma Rousseff mal começou e já trocou dois ministros. Aliados se dizem apreensivos com seu estilo. Teme-se que colha troco lá na frente. Dilma corre o risco de se inviabilizar?

Fernando Limongi: Se você acompanha o início do [Fernando] Collor, do Fernando Henrique e do [Luiz Inácio] Lula [da Silva], todos começaram com um rearranjo muito profundo das bases. Collor superestimou seu poder e precisou reformular o ministério. FHC começou com um governo majoritário para aprovar legislação ordinária, mas minoritário para reforma constitucional. Para passar a reforma da Previdência, chamou o PP e rearrumou a coalizão. Lula também começou minoritário. Na primeira fase o [ex] PFL e o PSDB cooperaram, depois ele também refez o ministério.

Valor: A base excessivamente heterogênea do governo não é fonte permanente de tensão?

Limongi: O que ocorreu com o [Antonio] Palocci também ocorreu no governo FHC, que teve uma crise no caso de escuta telefônica na Casa Civil [conversa grampeada entre o embaixador Júlio Cesar dos Santos e o representante da Raytheon, empresa que disputava o Sivam, levou à queda do chefe de gabinete do presidente, Xico Graziano]. Esse tipo de problema sempre acontece. Os governos sempre custam a engrenar e a encontrar seu ponto de equilíbrio. Dilma, por ter maior continuidade com Lula – com o fim do governo, não com seu início -, parecia que não ia ter esse problema de ajuste, mas é sempre difícil botar a coisa pra funcionar. O governo começa, tenta achar o prumo e encaixar as peças. É o contrário da ideia da lua de mel, do período de graça. Só com o início de governo é possível saber se as pessoas combinam com os cargos e as lideranças são de fato exercidas. Lula só foi achar o prumo quando Dilma subiu para a Casa Civil e botou a máquina para andar. Até lá, a visão era toda negativa porque a coisa não funcionava. Tinha-se grande expectativa de que [José] Dirceu ia ser o condutor, mas ele se mostrou muito aquém das expectativas. Além do mensalão, só deu problema e nunca foi o homem da máquina que se esperava.

Valor: Essa fase inicial de ajustes pode ser semelhante a outros governos, mas a base dela é mais ampla do que a de qualquer outro. São 17 partidos na base, sendo 7 representados no governo. A dificuldade de abrigar todos no primeiro escalão não é parte da explicação?

Limongi: Pode ser, mas não há evidências de que esse é o problema. Do ponto de vista das evidências, o que chama a atenção, e não se dá a devida atenção, é que o PMDB tem votado absolutamente disciplinado. Ter votado 100% unido no salário mínimo e no Código Florestal não é pouca coisa. O PMDB nunca teve essa unidade.

Valor: Qual é sua leitura dessa unidade?

Limongi: Essa unidade é politicamente construída. [Michel] Temer exerce uma liderança sobre a bancada que ninguém nunca teve. O PMDB sempre esteve em todos os governos, mas nunca com essa disciplina. Isso é disciplina de PT. O PMDB hoje tem mais cadeiras e representação nacional do que qualquer outro partido. Está jogando diferente. Se há tensão no interior da base por espaço, o PMDB vai ocupá-lo. O partido já não era pequeno no fim do governo Lula. E agora joga com unidade para aumentar seu espaço. Todo mundo falou do seu lado fisiológico ou ruralista no Código Florestal. Até pode ser que o PMDB tenha sido majoritariamente ruralista, mas e o PCdoB, que votou igual?

Limongi: É parte da estratégia política do PMDB, e não necessariamente o partido é o mal. Não existe um lado do bem e do mal, como todo mundo tende a ler. Meus filhos de cinco e oito anos podem pensar assim, mas as coisas são muito mais complexas. O Código Florestal tinha muitos lados, vi alguns debates e não conseguia saber de que lado eu estava. Ninguém, no fundo, sabia de que lado estava.

Valor: Mas o fato é que o governo foi derrotado na votação…

Limongi: Em situações semelhantes outros governos sempre foram mais ambíguos, mais coniventes e dançaram conforme a música. Dilma bateu ficha numa questão difícil. FHC e Lula sempre fugiram pela tangente nessas horas, fizeram algum acordo que diluía o embate. Lula decidia por decreto no tema. Dilma não diluiu. Talvez tenha sobre-estimado forças, não tenha querido voltar atrás, perder imagem. Ex post foi desnecessário, até porque ainda tem Senado e a negociação vai e volta.

Valor: Essa disposição de bater ficha, no limite, não pode comprometê-la com a base?

Limongi: As demissões nos Transportes vão na mesma direção, muito menos panos quentes do que normalmente se coloca nessas questões. O curioso é que quando ela compõe é porque está sendo conivente. Quando enfrenta é porque não tem jogo de cintura. O partido com o qual está brigando, o PR, teve problemas similares no governo FHC, quando ainda se chamava PL. Valdemar Costa Neto meteu-se num conflito que envolveu a Polícia Federal em Guarulhos. Saiu atirando e foi a partir daí que começou a construir a aliança com o PT. Quando o PL saiu do governo, Valdemar disse que cada um tem o porto que merece, falando que o Temer controlava o porto de Santos e ele, Guarulhos. Essa redefinição de espaços tem muito a ver com a renovação das cúpulas, que vai bater no mensalão. O PL era controlado por Álvaro Valle. Quando ele morreu, o controle passou para Valdemar. O PTB era controlado por aquele banqueiro do Paraná que foi ministro de FHC [José Eduardo de Andrade Vieira, do Bamerindus]. Aí o cara saiu e veio [Roberto] Jefferson. [Paulo] Maluf perdeu o controle do PP com a reeleição. Não se sabe como esses partidos são controlados. São extremamente centralizados e baseados em comissões provisórias. Seu eleitor votava numa direita tipo PFL, PDS ou PMDB, controlada por velhas lideranças mais acomodadas. Quando veio a transição PSDB-PT, começou a hemorragia na direita tradicional e esses partidos começaram a disputar espaço. É essa a malta que Dilma está tentando segurar em áreas com muito dinheiro, de Copa do Mundo e Olimpíada, e onde o Estado tem que se mostrar eficiente. Então decidiu enfrentar.

Valor: Sua aposta é de que, na indefinição de como se dará a relação de Dilma com esses partidos médios, o PMDB decidiu apostar cada vez mais na condição de fiador da governabilidade?

Limongi: O PMDB pode crescer muito aí. Não fiz os cálculos, mas acho que o PR é dispensável.

Valor: São 41 deputados…

Limongi: É, mas tem o bloco que o PR controla de todos os pequenos partidos de direita. Boa parte desses caras, se o governo falar “ó, ou joga direito ou tá fora”, não tem muito para onde correr. O PR não controla nenhum Estado, não tem nenhuma máquina.

Valor: Dilma tem sido persistentemente questionada sobre suas condições para lidar com essa base política, ao contrário de Lula e de FHC. Sua inexperiência nesse campo não pesa?

Limongi: Na verdade, no início dos governos Lula e FHC ninguém lhes reconhecia essas qualidades. Depois ambos viraram gênios. Dizem que Dilma é inexperiente, mas FHC nunca foi um cara prático. Dona Ruth é que administrava a conta corrente dele. Lula nunca tinha administrado nada, não tinha relação com a máquina do Estado. Dilma cresceu na máquina gaúcha e foi bater na Casa Civil. Foi superbem-sucedida e subiu como um foguete. Conhece como se governa, muito mais do que conheciam FHC, Collor, Itamar ou Lula. O que é que há no governo que a ministra da Casa Civil não conheça?

Valor: O controle da corrupção passa pela redução dos cargos comissionados?

Limongi: O problema é mais complicado do que parece. Algumas dessas questões que aparecem hoje são problemas e ambiguidades presentes desde o início do governo representativo de quem deve ocupar cargos, qual é o critério para a distribuição, se deve ser a competência ou o critério partidário. Nos Estados Unidos, esse é um problema desde o conflito federalistas versus republicanos no século XIX e até hoje não se resolveu. É verdade que esses conflitos por vezes são inadministráveis. O assassino de [Abraham] Lincoln foi um cara que não recebeu o emprego que esperava. Quem deve governar? Se forem os mais competentes, então quem governa são sempre os mesmos, os mais competentes. Mas você votou num partido para exercer o governo. O que a gente chama de loteamento é o exercício do governo partidário. Se o PT nomeia todo mundo e governa mal, a gente bota o partido para fora e vota no PSDB. O PSDB põe seus homens, se não derem no couro, que venha o próximo. Na coligação governista, o partido que tem quadros é o PT, mas o caso dos Transportes mostra que alguns partidos vão construindo ramificações com o setor privado e formando “quadros” em alguns setores.

Valor: E o combate à corrupção não passa pelo corte dessas ramificações?

Limongi: A gente não tem nenhuma forma de saber se a corrupção aqui é mais alta ou mais baixa do que no resto do mundo. O problema é óbvio: como se mede corrupção? Não pode ser medida objetivamente por razões óbvias. Os indicadores normalmente usados em pesquisas comparadas são indiretos e se referem à percepção. Muitas vezes essa percepção é um nome mais bonito para “pré-conceito”. Eu brinco que é possível obter uma correlação quase perfeita entre esses índices e pigmentação da pele. Os países africanos em geral aparecem como os mais corruptos e os escandinavos como os menos. Todas as indicações são de que a corrupção aqui é como em qualquer outro lugar. A Inglaterra, com esse escândalo da imprensa, mostra que quando os interesses privados chegam junto do Estado você não consegue mais distingui-los. De repente o cara está na Scotland Yard, de vez em quando ele está no jornal, ele vai na Scotland Yard… Esse é o jeito que os interesses se constroem. Não tem saída para isso. É um problema de assimetria de informações. Como é que você vai ter um setor de empreiteiras que seja verdadeiramente competitivo? Três ou quatro grandes empresas vão controlar o mercado. E quem vai contratar esses caras? No fim é o cara que era da empreiteira e foi para o Estado e de lá para o setor privado, e esses interesses acabam não se distinguindo como se gostaria.

Valor: O sr. diz que não há como medir se o Brasil é mais ou menos corrupto do que outros países. A que o sr. atribui, então, a difusão dessa convicção entre os brasileiros?Limongi: É puro “pré-conceito”. Quem acompanha política em outros lugares do mundo sabe que coisas feias acontecem em todo lugar. Uma vez fui fazer uma conferência para banqueiros na Europa. Eles queriam saber como funcionava o sistema político brasileiro. Fui lá e mostrei que funcionava bem, que tinha lógica, que a forma como eles entendiam os sistemas políticos europeus poderiam ser usadas para entender o Brasil. Daí, no debate, um senhor começou a me espinafrar, dizendo que estava cansado de ouvir que os políticos brasileiros eram confiáveis, que as coisas aqui eram OK, e quando ele abria o jornal só lia notícias desabonadoras quanto às nossas práticas políticas, que o governo brasileiro só fazia aumentar o déficit. Quando ele acabou de falar, eu estava meio nas cordas e para ganhar tempo perguntei de que país ele vinha. Ele respondeu: Itália. Não precisei responder. Só “I see” com riso meio cínico bastou.

Valor: O sr. vê alguma relação entre a perda de prerrogativas legislativas e a ocupação dos aliados em desencavar os podres da República? As MPs têm saído com mais de 50 temas, tanto que uma recebeu o nome de “árvore de Natal”…

Limongi:: Na entrevista do Temer para o Valor, ele começa falando: “Participei de um grupo que elaborou uma medida provisória. Nós ficamos estudando e todo mundo participou”. Então quem fez a medida? Dilma não tem tempo para fazer isso. Quando sai uma MP, não é uma decisão unilateral do Executivo.

Valor: Pode ser uma costura partidária, mas que foge do âmbito legislativo…

Limongi: Se está saindo como “árvore de Natal” é porque todo mundo já deu “pitaco”. Quando o texto começa a tramitar, não foi Deus quem o criou. Todo mundo já botou a mão. O texto não é confeccionado a portas fechadas.

Valor: Mas a oposição não participa…

Limongi: Nem é para participar. Tem a tramitação para espernear. Quando passou a reforma das MPs no governo FHC, todo mundo achou que estava fazendo uma grande coisa. E, na verdade, foi um desastre institucional. A MP tramitava no Congresso, em sessão conjunta da Câmara e do Senado. Não atrapalhava a tramitação dos demais projetos nem travava a pauta. Agora a medida passa pela Câmara, depois vai para o Senado, tem um tempo para correr, e tem que apresentar emenda aqui e lá, mas ninguém sabe como funciona. O fato é que se o Congresso quiser rejeitar uma medida porque não é pertinente à matéria em tramitação, derruba. O regimento garante. Não tem essa de nosso Legislativo estar subjugado, isso é tudo bobagem.

Valor: Num artigo polêmico, FHC disse que a política tem que ser buscada fora das instituições, nos jovens e na internet. A maior surpresa de 2010, Marina Silva, não veio desse mundo?

Limongi: Marina, de fato, surpreendeu. Mas só foi tão bem votada porque Serra e Dilma perderam votos. Lula polarizou demais no fim da campanha, chamou para a briga e tirou votos de Dilma, que, pelo desempenho da economia, teve um resultado eleitoral aquém do esperado no primeiro turno. Tanto que seguraram Lula no segundo. José Serra cresceu, mas puxando um voto que não era dele, de quem achava que, por ter religião, não podia votar em Dilma. Foi um voto que também beneficiou Marina. Teve a coisa religiosa que surpreendeu todo mundo. Marina não conseguiu segurar nem o PV. Então tem um apoio muito difuso e desorganizado para ser considerado um trunfo. Tirante o PT, nenhum partido consegue penetrar na sociedade, mas o que os petistas têm de voto é muito mais do que têm de militância e penetração. É outro modelo de partido daquele do pós-guerra, que tinha células, militância, cobrava contribuição, fazia jornal e tinha escolinha. Hoje partido não precisa disso, vai à TV. Se é isso que FHC quer dizer, realmente mudou e não apenas no Brasil. Mas não é de hoje.

Valor: A internet, então, ainda vai demorar a dar as cartas na política?

Limongi: Deve ter muita gente tentando transformar o que se passa na internet em voto. Não vai ser espontâneo. FHC é sociólogo e sabe que não há nada de espontâneo nesse mundo de meu Deus. Tem que ter coisa organizada, estruturada. Onde isso tudo junta? No modelo institucional da eleição majoritária. Por isso PT e PSDB têm vantagem. Porque polarizam as eleições e coordenam a competição. PT e PSDB saem na frente na hora de lançar candidato à Presidência. Vai ter um candidato do PSDB, um do PT e uma terceira via. Marina vai ter que correr por fora para montar uma estrutura de campanha. Não vai ter os governos estaduais do PSDB nem a estrutura de governo federal do PT. Não vai ganhar pelo Twitter, até porque as pessoas, para votarem nela, precisam saber que ela tem chance de ganhar. Uma candidatura desastrosa do PSDB poderia fazer isso. Mas o PSDB teria que pisar muito na bola. A história é cheia de partidos que dilapidam patrimônio brigando internamente. Serra já fez isso uma vez e ameaça repetir ao resistir a ceder a liderança.

Valor: Se a tendência de polarização na eleição presidencial é tão forte assim, por que não afeta a disputa pelo Congresso?

Limongi: O resultado mais intrigante dessas eleições foi o descasamento entre as eleições majoritárias e proporcionais. A eleição presidencial vertebra a disputa nos Estados, que foi totalmente casada com a presidencial. Em todo Estado teve o candidato da Dilma e do Serra. E o PMDB ora jogou com um, ora com o outro. Agora, no Congresso, os sinais de que o número de partidos estava diminuindo desapareceram. E não apenas porque PP, PDT, PTB, que eram partidos médios, caíram e se igualaram ao PR ou ao PSB. PMDB, PT e PSDB também caíram. Pode ter a ver com esse terreno pantanoso que saiu da órbita do PSDB e caiu na do PT, mas ainda não está fazendo muito sentido. O que parece de fato diferente é essa coisa de o PMDB votar unido.

Valor: Esse pacto político pela distribuição de renda, contra o qual ninguém se rebela, não é o substrato dessa fragmentação tão acentuada?

Limongi: Há uma certa indistinção entre o PT e o PSDB quanto às propostas. A gente não sabe o que o PSDB teria para fazer de diferente do PT. O discurso do Serra foi da eficiência, faço-melhor-do-que-eles-que-só-seguem-nossa-cartilha. Mas não deu certo. O PSDB não tem realmente uma agenda alternativa. O PT, enquanto na oposição, conseguia fazer uma imagem de que era diferente e tal, que depois com o mensalão se viu que não era tão diferente assim.

Valor: E como conseguem polarizar o eleitorado se não têm propostas diferentes?

Limongi: Não é fácil entender qual é a percepção que de fato os eleitores têm dos partidos, se os veem ou não como diferentes e se essas diferenças são programáticas ou de outra natureza. Para saber essas coisas é preciso fazer pesquisa de opinião, entender como os eleitores organizam a disputa partidária na cabeça. E quando a gente lê pesquisa bem feita sobre esse tipo de coisa sempre acaba se surpreendendo. O que me parece interessante é que os partidos brasileiros podem não estar organizados como estavam os da Europa do pós-guerra, mas a divisão do eleitor é forte. Todo mundo diz que brasileiro é pouco politizado. Mas é o contrário. Nessa última eleição presidencial, minha filha mudou de escola e passei a levá-la à casa das novas amiguinhas. Chegava lá e os pais me perguntavam: “Voto em tal partido, e você?” Ouvi inúmeras vezes no metrô gente falando em quem iria votar. Passei duas eleições presidenciais nos Estados Unidos sem ouvir nenhuma pessoa falar sobre eleição presidencial. E estava dentro do departamento de ciência política de uma universidade. Isso é impensável no Brasil. Todo mundo emite opinião política o tempo inteiro. E todo mundo declara suas preferências. E isso não pode se dar sem que os partidos desempenhem um papel. O voto é obrigatório, mas sempre se pode votar em branco ou nulo. E, se os partidos não fossem capazes de mobilizar eleitores, a taxa de votos brancos e nulos deveria ser muito alta. Até foram em algumas eleições, mas caíram violentamente com o voto eletrônico. É possível que votações como a de Enéas, Clodovil e Tiririca venham de eleitores que os partidos não conseguem mobilizar. Sempre há um candidato com discurso antipolítica para o qual um caminhão de eleitores converge.

Valor: Muito se especula sobre o vetor político da chamada nova classe média. Essa seria a última eleição da distribuição de renda?

Limongi: Acho que leva algumas gerações para a ascensão social virar conservadorismo. Não acredito que o cara que subiu na vida em dois anos vai ficar defendendo o dele e virar conservador. O eleitor pode ser extremamente volátil, no sentido de que, se o PT amanhã vem com uma crise econômica e esses ganhos são perdidos de um governo para o outro, o eleitor pode se bandear para a oposição. Com isso estou de acordo. Foi o que aconteceu no segundo mandato de FHC. No primeiro, ele estava com tudo, distribuiu renda e fez crescer. Veio a crise, o eleitor bandeou para o outro lado. Mas se o crescimento se mantiver não vejo esse cenário.

Valor: A última vez em que a política balançou o mercado foi na eleição de 2002. De lá para cá, entra mensalão, sai mensalão, entra PR, sai PR, e a política não abala mais a economia. Por que houve esse insulamento? Por que ninguém se arrisca a mexer no dito tripé da economia?

Limongi: Não sei se foi a política ou se foi a economia que se insulou. No fim do governo, Lula fez um certo keynesianismo e ninguém se insurgiu contra. Até porque se saíssem batendo poderiam colher rejeição eleitoral. Os políticos observam e esperam se vai dar resultado. Se der, não criticam. Na hora em que der errado, a oposição vai sair criticando e aí o PSDB vai montar seu discurso alternativo. Se a economia continuar bem até 2014, não vai haver plano alternativo. O fato é que todo mundo foi surpreendido pelas mudanças estruturais no mercado de trabalho do Brasil, muito mais significativas que a Bolsa Família. O mundo político também parece ter sido surpreendido pelas conexões do Brasil com a China, que o tornaram menos dependente dos Estados Unidos.

Valor: Se a gente olha para o Congresso americano, vê o fracasso tanto das tentativas de aprovar uma regulação mais rígida para o mercado financeiro quanto esse embate republicano com o Obama. Como é que o sr. vê a resposta da política à crise financeira?

Limongi: A má qualidade do sistema politico americano é uma coisa inacreditável. Quem fica falando que o sistema brasileiro não funciona é porque não conhece o americano. Se tem um sistema político travado, parado, incapaz de produzir decisão, é o americano. É um sistema em que a Presidência tem pouco poder efetivo, depende muito de um Congresso que é capaz de barrar e está repleto de traidores. [Paul] Krugman afirmou em artigo recente que esse limite de endividamento foi renegociado e ampliado mais de uma vez ao longo do governo Bush. Que rever e readaptar o limite à realidade não teria consequência econômica alguma. Que o ponto é pura ideologia. Que os republicanos querem nocautear o Obama. Creio que ele esteja certo. Acompanhei in loco a reforma da saúde pública. Vi e ouvi os argumentos dos republicanos. É pura ideologia. Desculpe o exagero, mas é realmente primitivo. O reacionarismo é impressionante. E já radicalizaram dessa forma no passado. Fecharam o governo Clinton ao não aprovar o Orçamento. Tomaram uma tunda depois. No que fechou o governo, a população se voltou contra os republicanos.

Valor: Foi naquele momento que Clinton conseguiu a reeleição, não foi?

Limongi: Clinton estava morto e aí eles resolveram pisar em cima e espicaçar. E aí o Clinton renasceu e foi reeleito. Então é mais ou menos a mesma situação que Obama, só que agora em proporções muito maiores. A única coisa que os republicanos querem é corte de gasto e de imposto. Estão criando um sistema inviável. Todos os dados que se tem sobre desigualdade nos Estados Unidos mostram que aumentou uma barbaridade no governo republicano porque se cortou imposto no topo e gasto para base sem se conseguir, com isso, dar impulso à economia. É um exemplo de mau funcionamento do sistema político inacreditável. Faz a gente falar “puxa, estamos numa maravilha!”

Valor: Os EUA, ao contrário do Brasil, não têm um Congresso que reproduz mais ou menos as mesmas divisões da eleição presidencial?

Limongi: Nos Estados Unidos você tem a eleição presidencial e o “coattail”, que é o efeito do voto puxado pelo presidente sobre o Congresso. Mas depois você tem reversão no meio do ano – em geral, o partido do presidente perde cadeira no meio do mandato. Quanto perde é que varia. Obama perdeu muito porque o americano médio é da direita brava. Se existe um sistema político que dá veto a minorias, esse sistema é o americano. No Senado há o que se chama de “filibuster”, que é basicamente o direto de a minoria estender indefinidamente o debate, evitando que a matéria venha a voto. Se a minoria é contra, a coisa não vem a voto. Bloqueia. Para tudo. O que Obama passou de reforma da Previdência foi um negocinho desse tamanho sob um custo inacreditável. Aqui o presidente passaria aquilo tranquilo.

Valor: Os dividendos políticos dessa crise que já dura três anos é o crescimento da direita, em alguns países, como a Noruega, tragicamente?

Limongi: A Europa tem um problema grave, que é a pouca tolerância para com o imigrante. Tem dificuldade para assimilá-lo, ao mesmo tempo em que precisa dele. Há países que estão com crescimento negativo, como a Itália. Todo mundo sabe que eles precisam de mão de obra, mas não querem imigrantes. Vão acabar com déficit populacional. Todos os estudos mostram. Isso pode ser fonte de tensão política grande, mas qualquer projeção seria arriscada de como é que isso vai se resolver. Olhando para o que está acontecendo nos EUA e Europa, essas ideias de que o Brasil tem um sistema político problemático, que atrapalha a economia, a distribuição de renda, é história para boi dormir. Tudo se provou errado. Tivemos todas essas coisas sem reforma do sistema político.

Valor: E por que sistemas políticos tão vigorosos não conseguem dar uma resposta à crise?

Limongi: Esses sistemas políticos que sempre foram modelos estão embaralhados com um problema de decisão. O que pode mostrar que o sistema político é muito menos importante do que se pode achar. Há uma supervalorização das escolhas institucionais, uma expectativa de que se possa reformar tudo por modelos institucionais. Li recentemente uma citação do [Pierre] Rosanvallon [historiador francês], dizendo que logo depois da Revolução Francesa os caras começaram a falar em reforma das instituições, sempre com a expectativa de que assim se poderia eliminar todas as impurezas do sistema político. Estamos pensando isso até hoje.

Valor: Em meio a essa crise, os países emergentes têm reivindicado maior parte da governança global, mas há resistências dos ricos, que não lhes reconhecem maturidade institucional para dividir essa governança. Com que argumento se pode sustentar a justeza dessas reivindicações?

Limongi: Quem quer que olhe para o sistema político americano e seu desempenho recente colocará em questão essa ideia. O governo de Bush filho – aliás, imagina só se tivéssemos pai e filho eleitos em tão curto espaço de tempo em um país latino-americano – já começou com uma lambança institucional sem igual. Não se pode dizer que a eleição na Flórida esteve livre de fraudes e, mais, que as fraudes não influíram no resultado. Ao longo do seu governo, explodiram vários escândalos envolvendo financiadores das campanhas de Bush. Basta lembrar a Enron. Isso para não citar a invasão do Iraque, toda ela montada em relatórios discutíveis. Qual é a maturidade institucional do grande líder? E o pior é que não são só os republicanos. O livro do [Joseph] Stiglitz ["O Mundo em Queda Livre"], deveria ser leitura obrigatória. Mostra que os economistas que dirigiam os bancos que causaram a crise de 2008 foram convocados por Obama para resolvê-la. Não é apenas ideologia ou ideias básicas que guiam as políticas. São as pessoas. São os mesmos caras. E eles fizeram o que se esperava que fizessem: protegeram os bancos e deixaram os eleitores pagar a conta.

O baixo risco de ser corrupto no Brasil

Leonardo Avritzer
Valor Econômico - 21/07/2011

 A demissão recente dos ministros da Casa Civil e dos Transportes envolvidos em escândalos com fortes traços de corrupção, assim como a tramitação do regime de contratação especial no Congresso Nacional reabrem um debate da maior importância para a democracia brasileira: como controlar a corrupção sem comprometer a eficiência do Estado brasileiro?

Já estão distantes os dias em que a opinião pública enxergava a corrupção de maneira jocosa expressa no "rouba mas faz". Até 1988, o Brasil vivia um clima de tolerância à corrupção que, na melhor das hipóteses era sancionada simbolicamente. Alguém afirmava "lá vai um corrupto" ou "esse indivíduo está envolvido em corrupção". Essa era a única maneira de apontar a corrupção. Tínhamos no Brasil a assim chamada "sanção simbólica da corrupção".

A partir da Constituição de 1988, essa atitude mudou. As novas atribuições do TCU, a criação da CGU em 2001 e as operações da Polícia Federal estão entre as ações importantes que ajudam a controlar a corrupção no Brasil. Sabemos mais sobre os casos de corrupção, alguns esquemas importantes de corrupção foram interrompidos por operações da Polícia Federal e, finalmente, podemos dizer que há um risco em ser corrupto no Brasil, risco esse que não é apenas simbólico. Casos de corrupção, tais como os dois mencionados acima, aparecem todos os dias na imprensa, o que não deixa de constituir um avanço nas formas de controle da corrupção.

Há, no entanto, uma segunda dimensão do fenômeno do combate à corrupção que merece destaque: a relação entre a baixa criminalização do fenômeno pelo judiciário e o aumento exponencial de regras impostos pelo assim chamado sistema "U". Os casos de coibição da corrupção no Brasil esbarram em um sistema judicial lento, com quatro instâncias e que trabalha com um conceito absurdo de presunção da inocência. A condenação em três instâncias é absolutamente inócua no Brasil e não produz nenhuma consequência jurídica. O foro especial ao qual tem direito o presidente, os ministros, os senadores e os membros do Congresso Nacional gera uma balbúrdia jurídica que inviabiliza a maior parte dos processos. Processos são transferidos dos tribunais de primeira e segunda instância para Brasília a cada eleição e, a cada demissão de ministro, voltam para os seus locais de origem. Ao mesmo tempo, o Supremo, pela sua característica de Corte constitucional, não consegue imprimir a esses processos a celeridade desejada. Cria-se um mecanismo de impunidade que reduz o risco das condenações por práticas de corrupção. Assim, é possível dizer que há um risco em aderir a práticas de corrupção no Brasil, mas esse risco ainda é incrivelmente baixo.

A reação do sistema "U" à falta de punição dos casos de corrupção é o aumento do controle administrativo. Difunde-se, no âmbito da máquina administrativa do Estado, formas de controle interno que aumentam o número de regras existentes para a realização de qualquer atividade. Ao mesmo tempo, se a punição às práticas corruptas é cada vez mais lenta no Brasil, a interrupção das atividades do estado na construção de infra-estrutura é cada vez mais frequente. Estamos assim, naquilo que denomino o pior dos mundos: não temos o chamado controle criminal da corrupção, isto é, não temos punição aos atos mais importantes de apropriação privada dos recursos públicos e temos uma máquina estatal que não consegue realizar os seus objetivos com eficiência devido a uma proliferação absurda de regras que minam a pouca eficiência que o setor público no Brasil tem. Como sair desse impasse?

Uma mudança que pode ser implementada para diminuir o impacto da impunidade sobre a eficiência do setor público é a introdução dos contratos de gestão entre órgãos e agências do setor público. Esta constitui uma maneira de compensar a incapacidade do controle administrativo de fazer frente à corrupção. Através de contratos de gestão, o Estado abriria mão do chamado controle administrativo exercido no varejo por meio de um conjunto de regras pouco claras. Ao mesmo tempo, órgãos como hospitais públicos, universidades federais, ou até mesmo os órgãos ligados as obras públicas teriam que assumir compromissos claros em relação a resultados. Por exemplo, hospitais poderiam ser administrados a partir de três metas: número de pacientes atendidos, custo por paciente, índices de mortalidade. Universidades poderiam assumir um formato parecido: número de alunos titulados, número de artigos publicados, custo por aluno titulado. No caso dos controles, haveria uma forte redução dos controles administrativos restando apenas os controles mais importantes que levariam, no caso de descumprimento, a processos criminais e não aos processos administrativos cujas limitações conhecemos. O importante é que essas metas envolvam aumentos significativos de produtividade no setor público.

A introdução de contratos de gestão no setor público teria dois objetivos: o primeiro deles é diminuir o foco do controle administrativo. O que vemos nos escândalos de corrupção mais importantes, aqueles que implicam em fortes danos às finanças públicas, é que órgãos como o TCU e a CGU controlam tudo e, no final, exercem muito pouco controle efetivo. Falta foco no controle administrativo no Brasil e ele só pode ser adquirido com uma nova filosofia dos órgãos de controle. Ao conciliar aumento da produtividade do setor público com um controle mais seletivo será possível alcançar o que a sociedade brasileira clama: o aumento do risco de aderir à corrupção que depende da punição criminal e não do controle administrativo.

Leonardo Avritzer é professor associado do Departamento de Ciência Política da UFMG e membro do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP).

Gasto social federal teve elevação de 140% em 15 anos

IPEA
Os números e a evolução do gasto social federal (GSF) estão no Comunicado do Ipea nº 98, elaborado pela Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Ipea (Disoc) e divulgado nesta sexta-feira, 8, durante coletiva pública na sede do Instituto, em Brasília. “Comparar o gasto social com o PIB nos permite observar a prioridade macroeconômica da área social, ter noção do esforço feito pelo governo e a sociedade, dentro das possibilidades econômicas, para estabelecer uma política pública”, afirmou José Aparecido Carlos Ribeiro, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto e um dos autores do estudo, intitulado 15 anos de Gasto Social Federal - Notas sobre o período 1995-2009.O gasto social do governo federal teve crescimento contínuo nos últimos 15 anos e atingiu quase 16% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009. Isso significa que foram destinados a áreas como saúde, educação, previdência e assistência social, entre outras, o equivalente a R$ 541,3 bilhões. Em 1995, o volume de recursos era de R$ 219 bilhões, pouco mais de 11% daquilo que a economia brasileira produzia em um ano.
Entre 1995 e 2009, o GSF aumentou em 4,6 pontos percentuais a sua participação no PIB. No primeiro período, que vai até 2003, o crescimento foi de 1,7 ponto percentual. A partir de 2004, os gastos tiveram aceleração e incorporaram mais 2,9 pontos percentuais do Produto Interno Bruto. 
“Desde os anos 1990, o Estado brasileiro tem se esforçado para montar um sistema de proteção social previsto na Constituição Federal. A assistência social, por exemplo, tornou-se um direito com a Constituição”, argumentou Jorge Abrahão de Castro, diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea.
Investimentos durante a crise
O estudo destaca ainda que o comportamento dos gastos sociais mudou durante a crise financeira mundial de 2008/2009. Antes, quando o país enfrentava uma crise, os gastos se comportavam de maneira pró-cíclica, ou seja, sofriam queda ou desaceleração, acompanhando o resultado negativo do PIB. Em 2009, ocorreu um movimento contrário. Os investimentos sociais aceleraram e cresceram quase 12%, enquanto a economia sofria com a recessão.
“Normalmente, o gasto social acompanha os movimentos bons e ruins da economia e, no momento em que são mais necessários, para segurar a crise, eles são reduzidos”, explicou José Aparecido. “Em 2009, o aumento e antecipação do salário mínimo e o reajuste do Bolsa Família contribuíram para segurar a crise e manter a demanda do consumo”, completou Jorge Abrahão.
Nos 15 anos avaliados pelo estudo, previdência e assistência social tiveram aumentos expressivos em relação ao PIB. Passaram a representar, respectivamente, 7,28% e 1,08% daquilo que a economia brasileira produz anualmente. Saúde e educação apresentaram comportamento instável, com recuperação acelerada nos últimos três anos. A educação recebia do governo federal apenas 0,71% em 2003, depois te ter atingido 0,95 oito anos antes. Em 2009, fechou com cerca de 1% do PIB.
“Todas as áreas tiveram crescimento acima da inflação, mobilizaram recursos superiores ao do período anterior. Nem todas, no entanto, conseguiram acompanhar ou superar o ritmo de crescimento da economia brasileira. É importante ressaltar também que saúde e educação recebem outros recursos de estados e municípios, não computados no estudo”, concluiu José Aparecido.

Reflexões sobre Deslocamentos Populacionais no Brasil

IBGE
A partir da década de 1980, o comportamento da mobilidade espacial da população sofreu importantes transformações nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. No Brasil, surgiram novos eixos de deslocamentos envolvendo expressivos contingentes populacionais, onde se destacam a inversão nas correntes principais nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, a redução da atratividade migratória exercida pelo estado de São Paulo, o aumento da retenção de população na região Nordeste, os novos eixos de deslocamentos populacionais em direção às cidades médias no interior do país, o aumento da importância dos deslocamentos pendulares (para trabalhar e/ou estudar), o esgotamento da expansão da fronteira agrícola e a migração de retorno para o Paraná.
Esses e outros aspectos são abordados na publicação “Deslocamentos Populacionais no Brasil”, uma coletânea de estudos sobre mobilidade populacional que abrange o debate teórico atual em torno desse tema e faz uma análise dos movimentos migratórios inter-regionais e interestaduais no Brasil entre 1995 e 2000 (com dados do Censo 2000) e nos períodos 1999/2004 e 2004/2009 (a partir de informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD).
São seis artigos elaborados pelo Grupo Transversal de Estudos do Território e Mobilidade Espacial da População (GEMOB), que reúne pesquisadores da Diretoria de Pesquisas, da Diretoria de Geociências e da Unidade Estadual de Minas Gerais do IBGE. O primeiro texto apresenta as abordagens teóricas que tratam do tema. O artigo seguinte analisa os deslocamentos populacionais nos anos 2000, utilizando dados dos Censos e das PNADs. O terceiro texto faz um panorama de como as migrações internas foram investigadas nos Censos Demográficos de 1970 a 2010. O quarto artigo trata de reflexões sobre a mobilidade pendular. Os dois últimos textos estão voltados para o tratamento empírico do fenômeno migratório, analisando os possíveis usos da informação sobre a emigração internacional, incluída no Censo 2010, e propondo um conjunto de variáveis que devem ser investigadas.
A publicação completa pode ser acessada na página http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/reflexoes_deslocamentos/deslocamentos.pdf.
Volume de migrações entre as regiões reduziu-se na última década
As edições da PNAD de 2004 e 2009 investigaram onde o pesquisado morava cinco anos antes da data de referência. Os dados mostram que o volume da migração inter-regional envolveu 2,8 milhões de pessoas no quinquênio 1999-2004 e 2 milhões de pessoas entre 2004 e 2009. Esse volume envolveu cerca de 3,3 milhões de pessoas no quinquênio 1995-2000 (dados do Censo Demográfico 2000). As principais correntes migratórias observadas no passado estão perdendo intensidade e se observa também um movimento de retorno às regiões de origem.
Constatou-se a perda de capacidade de atração populacional na região Sudeste, que apresentou saldo negativo de migrantes tanto em 2004 quanto em 2009. O Nordeste continua perdendo população, porém em uma escala bem menor que no passado:
O Índice de Eficácia Migratória (IEM) mede a capacidade de atração, evasão ou rotatividade migratória e é obtido através da relação entre o saldo migratório e o volume total de migrantes (imigrantes + emigrantes). Esse indicador permite a comparação entre os estados, independentemente do volume absoluto da imigração e da emigração. A análise do IEM dos estados obedeceu a classificação abaixo.
O IEM das Unidades da Federação revelou que metade delas são áreas de rotatividade migratória, ou seja, têm fluxos de saída e entrada semelhantes. Mesmo aquelas que no passado eram consideradas áreas expulsoras ou potencialmente atrativas se tornaram áreas onde as trocas entre imigrantes e emigrantes foram equilibradas. Em geral, observou-se uma tendência de diminuição do volume dos fluxos migratórios em todas as Unidades da Federação.
Os estados em que a migração de retorno foi mais expressiva em 2009 foram Rio Grande do Sul (23,98%), Paraná (23,44%), Minas Gerais (21,62%), Sergipe (21,52%), Pernambuco (23,61%), Paraíba (20,95%) e Rio Grande do Norte (21,14%).
A tabela a seguir mostra os saldos migratórios, o IEM e a participação dos imigrantes de retorno no total imigrantes por UF em 2004 e 2009:
Na região Norte, Amazonas, Roraima e Pará mudaram sua classificação quanto à capacidade de absorção migratória. O Amazonas passou de área de rotatividade para baixa absorção migratória entre 2004 e 2009, período em que mais de 40% dos seus imigrantes eram oriundos do Pará. Esse estado deixou de ser área de baixa atração e passou a ter baixa evasão populacional, tendo o Maranhão como seu principal destino. O estado de Roraima, que em 2000 era o único que apresentava um indicador de forte absorção migratória, passou a ter média absorção em 2004 e rotatividade migratória em 2009. O que sinaliza uma tendência de redução no volume de pessoas e, possivelmente, dos fluxos migratórios que se destinam a esse estado.
No Nordeste, os estados do Piauí, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba experimentaram um arrefecimento em sua capacidade de absorver população. Áreas antes consideradas de rotatividade migratória, como Piauí e Alagoas, se tornaram áreas de baixa e média evasão migratória, respectivamente; e os estados do Rio Grande do Norte e Paraíba reduziram sua capacidade de absorver população. Bahia e Maranhão continuaram como regiões expulsoras de população, embora com índice classificado como de baixa evasão migratória. Sergipe, Pernambuco e Ceará foram classificados como áreas de rotatividade migratória.
Os estados da região Sudeste caracterizam-se por serem regiões de rotatividade migratória, sendo que o Espírito Santo passou a atrair população classificando-se como uma área de média absorção migratória e o Rio de Janeiro, antes de baixa evasão, tornou-se área de rotatividade migratória, embora tendo apresentado saldo negativo.
Na região Sul, o Paraná passou de um pequeno saldo negativo para positivo, porém não alterando sua classificação quanto à capacidade de absorção migratória, que continuou como área de rotatividade, sendo São Paulo e Santa Catarina as maiores contribuições de imigrantes para o Paraná. Santa Catarina continuou com uma região de baixa absorção, com mais de 80% dos imigrantes oriundos de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Já esta Unidade da Federação passou de baixa evasão para rotatividade migratória, tendo com Santa Catarina as trocas mais significativas.
No Centro-Oeste o que chamou mais atenção foi a mudança do Distrito Federal de área de baixa evasão populacional em 2004, época em que a população se expandiu ocupando os municípios goianos localizados no entorno da capital, para área de rotatividade migratória em 2009, com a redução desses deslocamentos; o estado de Goiás caracterizou-se por receber grandes quantidades de migrantes de vários estados, além do Distrito Federal, podem-se citar Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Tocantins e Maranhão, sendo classificado como área de média absorção migratória. Mato Grosso do Sul e Mato Grosso foram áreas consideradas de rotatividade migratória, tendo sido o Mato Grosso no quinquênio 1999-2004 considerado de média absorção migratória.
Censo 2010: cidades com menos de 500 mil habitantes são as que mais crescem
Os resultados divulgados do Censo Demográfico de 2010 apresentam apenas os volumes populacionais desagregados por município. Com esses dados é possível estabelecer os eixos de crescimento populacional no país e especular sobre áreas que ganham ou perdem população, de modo a inferir se houve alteração no comportamento dos deslocamentos de população na década passada. Verificou-se que as cidades com menos de 500 mil habitantes são as que mais crescem no país, o que demonstra a influência da migração, muito embora as grandes cidades continuem concentrando parcela expressiva da população (aproximadamente 30%). O ritmo de fragmentação do território foi menos intenso que nas décadas passadas, tendo sido instalados 58 municípios, contra 501 nos anos 1980 e 1.016 nos anos 1990.
Analisando a evolução do crescimento dos municípios, é possível verificar que 27% deles, parcela expressiva desses com até 10 mil habitantes, perdem população e, do ponto de vista do desenvolvimento, representam espaços estagnados. Entre esses, quase todos tiveram, no ano de 2008, Produto Interno Bruto (PIB) per capita muito baixo. No estrato de municípios com decréscimos populacionais, quatro cidades consideradas de porte médio podem ser destacadas: Foz de Iguaçu (PR), Ilhéus (BA), Lages (SC) e Uruguaiana (RS).
Com crescimento nulo ou baixo (até 1,5% ao ano) surgem cerca de 46% dos municípios. Esse desempenho pode ser atribuído aos níveis mais baixos da fecundidade e à pouca atratividade populacional exercida por esses espaços, aqui incluídas 23 cidades consideradas de grande porte. Nesse conjunto, prevalece a combinação de PIB baixo e áreas muito adensadas. Por exemplo, os núcleos das nove tradicionais regiões metropolitanas, no período, registraram taxas abaixo de 1,5% ao ano, sendo que Porto Alegre apresentou o pior desempenho, com taxa de 0,4%. Rio de Janeiro e São Paulo tiveram variações próximas a 0,8%.
Na faixa de crescimento entre 1,5% e 3% ao ano aparece algo próximo a 19% dos municípios, basicamente de tamanho médio e com PIB um pouco mais elevado, quando comparado ao estrato anterior. Nesse grupo também se encontram 15 cidades de grande porte, sendo nove capitais (Brasília, Manaus, Goiânia, São Luís, Maceió, Teresina, Campo Grande, João Pessoa e Aracaju) e seis do interior (São José dos Campos, Ribeirão Preto, Uberlândia, Sorocaba, Feira de Santana, Joinville).
Entre as cidades com altas taxas de crescimento (8% do total), nenhuma possui mais de 500 mil habitantes. A explicação sobre o crescimento não fica claramente explicitada pelo tamanho do PIB per capita, muito embora os municípios com os melhores indicadores encontrem-se neste estrato.
Deslocamentos populacionais exigem novas abordagens
O tema migração tem incorporado novos quesitos a cada Censo desde os anos 1970, período em que aprofunda a internacionalização da economia e sociedade brasileiras. No geral, os últimos cinco censos incorporaram a maioria dos quesitos relevantes para o estudo das migrações internas.
Um dos desafios atuais é estimar números sobre brasileiros que vivem no exterior e de imigrantes internacionais vivendo no Brasil, já que parte significativa desses fluxos migratórios é constituída do que se convencionou chamar de “ilegais” ou “clandestinos”. Os movimentos pendulares também precisam de novas abordagens, pois explicações focadas somente nas condições econômicas e educativas não conseguem explicar totalmente a complexidade do fenômeno.
O Censo Demográfico de 2010 abordou pela primeira vez a emigração internacional de brasileiros. Já a PNAD Contínua, que se encontra em fase de planejamento, pode vir a detalhar os movimentos pendulares no seu questionário básico e ter um módulo periódico sobre migrações, tratando sobre trajetórias migratórias, redes sociais, motivação e perfil educacional e laboral.