Maria Cristina Fernandes,
Valor Econômico
Dois anos antes do golpe de 1964, quando a esquerda embarcava na onda da revolução, Wanderley Guilherme dos Santos alertava num livro lendário (Quem dará o Golpe no Brasil, Civilização Brasileira, 1962) sobre a quartelada que estava em curso e que acabaria por sufocá-la. Meio século depois, quando a análise política predominante situa o governo Luiz Inácio Lula da Silva como continuador da herança varguista e já trata de delinear os atritos deste legado com o governo Dilma Rousseff, lá vem Wanderley Guilherme novamente na mão contrária. Aos 75 anos, continua com um facho na mão.Foi Lula, diz, quem, na verdade, encerrou a Era Vargas. Não fala a partir da Casa Rui Barbosa para cuja presidência ainda não foi oficializado. "A outra Era Vargas" é o tema da aula magna que profere hoje no início das atividades do Iesp, o instituto que, encampado pela Uerj, abriga os pesquisadores do antigo Iuperj fundado por Wanderley Guilherme no final dos anos 60.Recorre ao seu conceito de cidadania regulada, que se tornou um dos mais influentes da ciência política nacional, ao advogar para Lula a condição de coveiro da Era Vargas.
Cunhado no final da década de 70 (Cidadania e Justiça, Campus, 1979), o conceito define a cidadania não por um conjunto de valores políticos mas pela inserção formal no mercado de trabalho. Com Vargas, passou a ser cidadão quem tinha uma profissão regulamentada e pertencia a um sindicato. A carteira de trabalho, na comparação de Wanderley Guilherme, passou a ser, de fato, a certidão de nascimento cívico e acabou controlando a expansão da cidadania no Brasil.O primeiro ato de rompimento com a cidadania regulada, diz, aconteceu sob Médici, com a criação do Funrural. A abertura política ampliou o rompimento dessa regulação, mas foi apenas no governo Lula que seus pressupostos teriam sido sepultados.
Sem desmerecer o Bolsa Família, prefere lançar mão de um outro programa social, o Brasil Sorridente, para sustentar a tese de que não é preciso mais ser um torneiro mecânico para alcançar a cidadania. Segundo dados do Ministério da Saúde, as 18.650 equipes do programa haviam atendido, até 2009, 87 milhões de brasileiros que, até então, engrossavam os contingentes de desdentados que tanto envergonham a identidade nacional.Wanderley Guilherme saúda a desregulação da cidadania mas não acolhe com o mesmo entusiasmo o fim de um dos instrumentos de sua promoção, o imposto sindical. Seus opositores estariam filiados à interpretação de que Vargas domesticou o movimento sindical - "Não havia nada a ser domesticado, os sindicatos eram fracos; o que o imposto fez foi resolver o problema da ação coletiva num momento em que a esquerda era revolucionária, não queria fazer política nem se expor ao degredo pela ação sindical".Enquanto a cidadania era regulada pelo Estado, o imposto sindical, era, e continua sendo, privado. Ao contrário do fundo partidário, que é estatal, o imposto sindical é recolhido junto aos trabalhadores. Acredita que o sistema possa ser aperfeiçoado mas indaga o que aconteceria se caísse a compulsoriedade: "Os ganhos obtidos pelos sindicatos apenas serão usufruídos pelos filiados?".Diz que a oligarquização atinge tanto as organizações sindicais trabalhistas quanto as patronais, mas não acredita que o meio para combatê-la seja o fim do imposto sindical. Credita o engajamento da CUT e do PT na campanha pela sua extinção a uma compreensão enviezada da Era Vargas que pode jogar por terra um estímulo à ação política dos trabalhadores.Não acredita que o governo Dilma esteja contaminado pelo que chama de sentimento antivarguista conservador que hoje abriga CUT e PT. Cita a participação de empregados no conselho de administração das estatais, promulgada por Lula e regulamentada por Dilma, como um sinal eloquente de continuidade. "É um ato histórico porque tem a ver com a participação de trabalhadores no destino da mais valia e na definição dos investimentos que vão garantir empregos no futuro; é uma participação política crucial".Os limites da continuidade, diz, serão dados pela necessidade - mais premente agora do que o foi sob Lula - de se arbitrarem perdas.
É isso que está em questão na discussão da política antiinflacionária. A desregulação da cidadania só foi possível pelo rompimento com o preceito de que não era possível crescer sem inflação e desigualdade. Crescimento exige mais poupança interna e isso não rimava com distribuição de renda. Wanderley Guilherme diz que esta foi uma das mais espetaculares rupturas dos últimos oitenta anos visto que os dois antecessores que o superaram em avanço do PIB, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel, não conseguiram domar a inflação nem evitaram que a desigualdade aumentasse."Os radicais dizem que os bancos ganharam mais. É claro que os ricos ficaram mais ricos, mas os pobres ficaram menos pobres em maior proporção. Isso se deu porque o bolo cresceu e é possível que não o faça no mesmo ritmo neste governo. Dilma terá que impor perdas a alguns segmentos se quiser que a desigualdade continue a ser reduzida", diz.Terá ainda que se ver com o crescimento do potencial do eleitorado conservador - tema de seu mais recente artigo no Valor (30/09/2010) - decorrente da percepção da nova classe média de que, dados os limites à mobilidade social, solavancos sociais podem acabar por desalojá-la.Pelas medidas até agora tomadas, em relação ao salário mínimo, ao aumento do valor do bolsa família, ao programa de combate à miséria e às medidas antiinflacionárias, não vê uma arbitragem que rompa com o padrão de governo que a antecedeu.
O que ainda está por ver, na arbitragem das perdas, é o que Dilma fará para manter os pressupostos da competitividade internacional do país, o investimento em tecnologia e inovação. A ausência desse esforço sacrificaria um crescimento sustentado do país sem o qual todo o resto, desta e de outras eras, ficaria comprometido.
Reporter Esso em edição extraordinária
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