Marcelo Neri
Valor Econômico
A desigualdade brasileira apesar de ser uma das "mais grandes do mundo" - como dizem nossos vizinhos latinos - deixou de ser ponto fora da curva internacional. É o que pude aprender em reuniões com pesquisadores de países desenvolvidos (Alemanha, EUA e Coreia) e emergentes (China, Índia, África do Sul e México).
Inicialmente vale frisar a magnitude ainda absurda da nossa desigualdade. O índice de Gini - a medida mais usada de concentração de renda - varia de 0 a 1. Zero se as rendas de todos fossem iguais, e um quando a renda de todos se concentra numa única pessoa. Ou seja, nosso Gini atual de 0,53 está ainda mais próximo do máximo do que do mínimo da desigualdade. Por outro lado, ela está em queda aqui, e em alta nos demais países citados. Senão vejamos.
Em todos os países europeus da OCDE a desigualdade aumenta desde 1985 - a não ser pela França e Bélgica. Nos países nórdicos, como Suécia e Finlândia, entre os mais igualitários do mundo - função de um generoso Welfare State - é onde a desigualdade aumentou mais. A desigualdade americana segue na mesma trajetória ascendente no período pós-Reagan, qualquer que seja a medida usada, mas mais naquelas que focam mais no topo da distribuição de renda.
Nos anos 2000 a renda dos 50% mais pobres no Brasil subiu 67,9% contra 10,03% dos 10% mais ricos
Mais do mesmo aumento de desigualdade acontece nos demais Brics. Em particular, quando fazemos os devidos ajustes passando de medições baseadas em consumo para renda e atualizamos os dados: Os Ginis da China e da Índia de 0,48 e 0,52, respectivamente, se aproximam do brasileiro. O Gini da Rússia passou de 0,28 nos escombros do comunismo para 0,42. Na África do Sul, o Gini está em 0,67 - nunca vi um tão grande - com alta pós-apartheid.
O Gini do Brasil acaba de chegar ao mínimo da nossa série histórica iniciada em 1960 mas ainda superior a todos os países acima citados. A exceção do México, que sofre os efeitos conjunturais do casamento com a economia americana, agora em crise. Esse revés mexicano importa pelo tamanho do país na América Latina. Os livros recentes de Leonardo Gasparini e outro de Nora Lustig e Luis Felipe Calva apontaram redução de desigualdade em 13 de 17 países do continente entre 2000 e 2007. A exceção é Costa Rica e Uruguai justamente os mais igualitários dos latino americanos. A América Latina, o mais desigual continente do mundo é justamente onde a desigualdade cai.
Modelos de livro-texto de crescimento como o de Solow apregoam a convergência de renda média entre países. O que de fato está acontecendo no período recente a nível global devido ao descasamento do forte crescimento da China e da Índia em relação aos demais países. Esses dois países são estratégicos pois abrigam mais da metade do pobres do mundo.
Há convergência mundial da desigualdade dentro dos países? No sentido de que quem tem muita desigualdade passa a ter menos e quem tinha menos desigualdade interna passa a ter mais?
A desigualdade total entre os membros da aldeia global não estaria necessariamente aumentando, mas apenas mudando a sua forma a partir de convergência de rendas médias entre países e da convergência de desigualdade dentro dos países. Essa é a minha conjectura aqui.
O que realmente difere no caso brasileiro - e latino-americano - da última década, pelo menos para os demais países apontados acima, é o movimento das respectivas diferenças internas. Queda aqui e alta alhures. Saímos no Brasil de um Gini de quase 0,6 em 2001 atingindo 0,53 em 2010, com queda em todos os últimos 10 anos. A taxa acumulada de crescimento da renda real per capita na década passada dos 10% mais ricos foi de 10,03% contra 67,93% dos 50% mais pobres. Ou seja, descontando a inflação e o crescimento populacional, o crescimento da metade inferior foi 577% mais alto que o lado belga de nossa Belíndia que detinham antes quase metade da renda nacional (vide www.fgv.br/cps/dd).
Eu estou fechando neste mês circuito passando por todos os Brics. Neste trajeto aprendi que o Bolsa Família virou produto de exportação Made in Brazil. Invariavelmente as pessoas querem saber sobre o programa, ou então sobre a ascensão da nova classe média brasileira - este mais ao gosto das empresas privadas, em época de estagnação da demanda. Como disse certa vez nosso big Mac Margolis, correspondente da revista Newsweek no Brasil, todos querem saber como colocamos o nosso Gini de volta na garrafa e quais são as consequências disto.
Em particular, os chineses estão muito sérios à espera da nossa estória, dada intenção deles de redistribuir renda. O combate à desigualdade e o consequente equilíbrio entre despesas de investimento e exportações de um lado, e consumo das famílias e possivelmente importações, de outro, estão no centro do planejamento de 12 anos deles. O que se percebe na infraestrutura chinesa é que nesse ritmo de crescimento vai leva-lá em tempo recorde até o 1º mundo. É que quando eles se propõe a fazer qualquer coisa, eles simplesmente fazem.
Devo admitir que o anúncio do redistributismo chinês soou como música aos meus ouvidos. Produzindo rara convergência entre o meu lado de economista social preocupado com a felicidade geral dos chineses e meus interesses corporativos tupiniquins.
Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, FGV. Autor dos livros "Ensaios Sociais", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Microcrédito, o Mistério Nordestino e o Grammen brasileiro". mcneri@fgv.br.