O Centro de Referencia do Interesse Público (CRIP) reúne um conjunto de professores da Universidade Federal de Minas Gerais das áreas de ciência política, filosofia e história que partilham um diagnóstico sobre a realidade política brasileira. Na nossa opinião, o Brasil foi constituído a partir de uma fraca noção de identidade pública e sob a batuta de interesses privados muito fortes. O nosso estado é um estado forte demais para conceder favores e fraco demais para estabelecer com clareza os limites entre o público e o privado, especialmente para os poderosos. Fenômenos como o que assistimos na semana passada, de um ministro da Casa Civil afirmar que fez aquilo que todos fazem, isso é, negociou informações e acesso privilegiado ao estado com grandes grupos econômicos, são parte do dia a dia da política brasileira. É verdade que a opinião pública se indigna com razão a cada um destes episódios, mas a verdade é que a sua raiz reside em aspectos quase estruturais da cultura brasileira. Uma incapacidade de construir uma noção forte daquilo que é público na política.
O CRIP pretende tratar acadêmica e politicamente dos fenômenos da corrupção e da organização da Justiça no Brasil. No que diz respeito à corrupção, temos aplicado anualmente, desde 2008, pesquisas de opinião sobre o problema, tentando produzir medidas de longo prazo e comparativas sobre o fenômeno, algo que inexiste hoje no país. Ao longo destas pesquisas, três resultados importantes foram revelados: o primeiro deles é que a população brasileira na sua esmagadora maioria (73%) acha a corrupção um fenômeno grave ou muito grave; o segundo é que a população não acredita que a corrupção aumentou durante os últimos anos – que ocorreu foi que ela passou a ser mais investigada, especialmente pelas operações da Polícia Federal; e em terceiro lugar, a população identifica corretamente que a instituição que mais abriga a corrupção é o Poder Legislativo, com os Legislativos municipais capitaneando o processo.
Vale a pena comentar alguns destes resultados. De fato, a população brasileira aumentou a sua atenção e a sua rejeição à questão da corrupção nos últimos anos. No entanto, têm faltado à população os meios para melhorar a qualidade do sistema político brasileiro. Estes podem vir ou através de iniciativas da sociedade civil ou através de mudanças na legislação e aprimoramentos institucionais que impliquem em melhorias no controle da corrupção. Dentre as diferentes iniciativas que são possíveis, uma se destaca devido à sua origem na sociedade civil: a proposta da lei da ficha limpa. É sabido que o Brasil tem uma das concepções mais estapafúrdias do mundo acerca da presunção da inocência pela via do assim chamado “transitado e julgado”. Até recentemente, a condenação de um político em três instâncias do Poder Judiciário não tinha absolutamente nenhuma conseqüência em relação às suas ações, ou seja, ele continuava livre e podia ser candidato. A Justiça não produzia praticamente nenhum efeito em relação às ações dos políticos, especialmente em relação àqueles que se habilitam ao foro especial. A ficha limpa veio com a intenção de modificar este estado de coisas. Ela propôs a impossibilidade de concorrer a um mandato depois de uma primeira condenação em segunda instância.
A importância desta lei não pode ser subestimada quando cruzamos com a percepção da população sobre a corrupção. A percepção da população, corretamente, é que a corrupção tem maior incidência no Poder Legislativo. Os problemas tratados pela ficha limpa restringem as candidaturas principalmente a este Poder. Esse pode ser um bom início para uma agenda que interessa aos membros do Centro do Interesse Publico e que estaremos discutindo neste Fórum que é: quais modificações podem fazer com o sistema político brasileiro se torne menos corrupto? Sabemos que algumas mudanças podem ajudar como é o caso da mudança nas regras de financiamento de campanha. Mas não temos ilusões. É preciso mudar a maneira como o Judiciário brasileiro funciona para que a corrupção no país diminua. Esse é o segundo tema que pretendemos tratar neste fórum.
A questão do papel do Judiciário na sociedade brasileira é bastante complexa. Até 1988, era o mais fraco dos três Poderes e o que menos se afirmava frente ao Executivo. Depois de 1988, o judiciário recuperou fortemente suas prerrogativas, ao mesmo tempo que o Congresso Nacional continuou a perder as suas. Hoje há um forte processo de judicialização no país firmemente calcado no artigo 102 da Constituição e sua regulamentação posterior, que ampliou fortemente os atores que podem arguir a inconstitucionalidade, incluindo desde a OAB, aos partidos e associações de classe. Assim, ocorreu um forte aumentou do conjunto de questões que chegam ao STF para o exercício do controle concentrado de constitucionalidade. Ao mesmo tempo, a Constituição não alterou fortemente a estrutura de privilégios e recursos que, como sabemos, entrava o Judiciário brasileiro. Pelo contrário, o uso recorrente do Judiciário por certo atores, especialmente pelo próprio Estado e grandes atores econômicos torna a Justiça brasileira muito lenta e permite a impunidade, que é hoje uma das grandes preocupações da sociedade brasileira. Sabemos que em janeiro de 2011 o estoque de ações no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo alcançava a marca de 18 milhões de processos, entre os quais 10 milhões ligados à execuções fiscais municipais, uma grande parte delas de baixo valor. A incapacidade do Poder Judiciário de responder aos reclamos da sociedade contra a impunidade, em particular, contra a impunidade daqueles que cometem crimes contra o erário público, é hoje uma das maiores ameaças à legitimidade das instituições políticas no país.
Vale a pena analisar algumas iniciativas que podem ter um impacto positivo, tanto no combate à corrupção quanto na impunidade geral que graça em relação aos membros do sistema político. Trata-se da lei da ficha limpa e da assim chamada “emenda Peluso”. Em ambos os casos, trata-se de revisar fortemente a ideia do transitado em julgado brasileiro de maneira que condenações de segunda instância tenham de fato efeito e penas comecem a ser cumpridas. No caso da ficha limpa, vale a pena perceber que ela expressa uma tentativa da sociedade civil brasileira, através do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral de intervir no processo político de modo. Neste caso, trata-se não apenas de romper com uma tradição de impunidade que, no caso do sistema político é mais ampla, devido à lentidão adicional causada pelos forus especiais, como também de qualificar uma dimensão mais republicana do Estado. O critério para alguém ser candidato e servir ao poder público deve estar além da simples dúvida processual a qual cabe um recurso. Há no “ser candidato” ou no “ser membro do sistema político” uma dimensão de responsabilidade com o dever público que a lei precisa contemplar. No caso da emenda Peluso, a questão mais importante é fazer com que um padrão mínimo de igualdade penetre no funcionamento do sistema de justiça no Brasil impedindo que aqueles que têm acesso a bons advogados possam se manter indefinidamente em liberdade, independente da culpa. O caso Pimenta Neves, finalmente resolvido recentemente, é o melhor exemplo da utilização do sistema de Justiça com o objetivo da impunidade.
O membros do CRIP, Centro de Referência do Interesse Público, irão no fórum, que ora instalamos em parceria com a Carta Capital, tratar destas questões a partir de perspectivas plurais, envolvendo a ciência política, a filosofia, a história e os estudos sobre cultura. A cada semana um dos membros do CRIP e ou parceiros que têm trabalhado conosco nas nossas principais publicações – Reforma Política no Brasil e Corrupção: Ensaios e Crítica – irão ocupar o fórum para tratar de um destes problemas levantados acima na perspectiva do Interesse Público. Acreditamos que o fórum constitui um excelente momento para o estabelecimento desta parceria que pretende aprofundar temas que frequentemente são abordados pela imprensa, mas não são aprofundados. Estes artigos terão como objetivo aprofundar o debate público sobre os temas do controle da corrupção e do acesso ao Judiciário. Sendo assim eles pretendem reforçar uma tradição de jornalismo independente e bem informado que tem sido a marca da revista “Carta Capital”.